Naquele dia, o homem decidiu que queria ser livre. Entre o poder ser livre e ser um animal social, optou pela liberdade de decidir a sua vida, sem prisões nem limites económicos ou sociais a condicionarem-no.
Lembrou-se do poema de Mário Cesariny, Pastelaria, em que um homem grita alto e bom som “Gerente, este leite está azedo”. Depois de o ouvir declamar, num fim de tarde ocasional num local, onde mais tarde se veio a erigir a Casa da Liberdade, pela primeira vez sentiu-se ser humano, em 25 anos de escritório.
No dia seguinte, em mais uma manhã igual a tantas outras, o homem olhou o espaço onde se arrastava há tantos anos e reconheceu quão cinzentas eram aquelas paredes, onde chegava uniformemente a horas certas e cumprimentava os superiores com deferência, a reproduzir gestos e mesuras de subserviente.
Nesse dia, algo mudara em si e atirou a pasta ao chão, depois de às 8h 30m, impreterivelmente, abrir a porta do escritório, por ser sempre o primeiro a chegar, o primeiro a sentar-se à secretária, o primeiro a começar a teclar no computador sem uma pausa até serem 13h 30m.
Tocava o sino mental: Hora de almoço!
Nessa altura foi interpelado pelo patrão que o ficou a olhar estupefacto. Sem se dar conta viu sair da sua boca, inesperadamente, uma gargalhada sonora e um “Tchau!” em resposta a mais um daqueles pedidos que se fazem aos homens escravos: “Álvaro, vá buscar os meninos ao colégio, porque a minha mulher está no cabeleireiro. Tem aqui a chave do bólide”. E a chave a tilintar na sua secretária.
A liberdade nasce com o ser humano, pensou o homem, entretanto são-lhe impostas restrições em virtude de ter de conviver em sociedade. Portanto, face ao seu espírito de poder ser livre e não um animal social, a liberdade inerente ao ser humano aconteceu no momento em que ele afirmou o seu Tchau e atirou a pasta, que o acompanhava desde sempre, ao chão. Sem medo de não almoçar nos meses seguintes.
“Gerente, este leite está azedo” ressoava na sua cabeça. É isso mesmo, pensou, aquela vida estava azeda e ele dizia-o sem medo, ele afirmava Tchau ao Patrão e atirava a pasta ao chão. Saiu para a rua e puxou, como no poema, a gola do casaco para se proteger. Fazia frio. Sorriu, soltou uma gargalhada e mostrou os seus dentes muito brancos e lavados ao mundo.
Não estava maluco, obtivera com aquele seu Tchau um nível superior de importância para si mesmo, e para quem o olhava. Sem se dar conta, percebeu que esse outro nível derivava de ter perdido o medo, o medo do desemprego, o medo de não ter dinheiro, o medo de ser posto de lado, do bullying dos colegas e superiores, ou de ser colocado na prateleira no emprego, o medo de morrer; era uma dignidade estranha que sentia no peito e o fazia acreditar que o poema do Mário Cesariny tinha atingido o seu objetivo libertário, livre de amarras.
A liberdade tem a ver com as assimetrias do tal animal social e ele era o suburbano dependente que fazia tarefas fora dos seus propósitos, por estar numa condição de inferioridade. Não se importava com as consequências. Era isso o ser livre. O ter tomado consciência da sua vulnerabilidade, obrigava-o a ceder a propósitos que lhe impunham.
Se não tivesse entrado, nesse dia, no dito local onde decorria uma exposição do Mário Cesariny e se declamava o poema, não teria tido esse vislumbre do que é poder ser livre e não se importar com as consequências e desse modo obter o respeito por si mesmo, uma espécie de dignidade que o aquecia por dentro.
Já na rua viu com surpresa os chaimites a caminharem devagar.
Uma nova era começava para ele e para o mundo. Era o dia da liberdade.
Leonor Duarte de Almeida
Maio, 2021
Foto de Manuel Rosário
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