para Jayro José Xavier
Entre uma volta e outra do parafuso vejo um lento caracol que emerge “das sombras eternas do fundo do pátio.” São quatro horas da tarde, as cigarras amolecem o dia e sinto que a matéria se expande, invade o instante – esse espaço densíssimo de nada.
Deposito a ferramenta: nas mãos, a memória perfeita.
O caracol deita uma baba brilhante à passagem, “inclina as antenas e capta o áspero dia” entre folhas que apodrecem mostrando a tessitura, agora ossadas descarnadas de onde o sortilégio se foi.
Prossegue o caracol abrindo as próprias trilhas. Passa soberano ao largo de formigas que arrastam um seu moribundo irmão e flui, de uma obscuridade a outra, deixando não mais que um visgo furta-cor no chão da tarde indiferente.
Henrique Chaudon
Setembro, 2024
Azulejo de Júlio Pomar, foto de Isabel Almasqué