De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Uma noite bem passada

Eram quase dez da noite e o táxi avançava rapidamente pelas ruas da cidade. Adelaide, sentada ao lado da mãe, no banco de trás, ia na esperança de que não fosse nada de grave. Apesar de tudo e já na casa dos oitenta, a mãe tinha sido sempre saudável. No entanto, volta não volta, sentia estas súbitas indisposições que, felizmente e até agora, não tinham passado de pequenos sustos. Os médicos nunca tinham apurado nada de concreto. Mas desta vez, as queixas pareciam diferentes e Adelaide achou mais prudente levar a mãe à urgência do hospital.
À chegada, após as inevitáveis burocracias, sentaram-se na sala de espera, àquela hora a abarrotar de gente. Apesar disso, não tardou muito a ouvirem chamar o nome da D. Perpétua. O médico, jovem com ar afável, talvez para diminuir o nervosismo que a doente aparentava, perguntou: “Então a D. Perpétua é de Seia? Olhe, a minha família é duma aldeia ali perto e eu passo lá sempre as férias. Adoro lá ir.” Foi quanto bastou para desanuviar o ambiente e para que Perpétua que até aí só tinha pronunciado monossílabos, começasse a falar pelos cotovelos da aldeia, da família da sua infância, das indisposições do estômago e doutros males que a afligiam de quando em vez. Parecia que lhe tiram tirado uma rolha da boca. Depois de a observar, o médico achou que seria mais prudente fazer umas análises antes de lhe dar alta: “Na sua idade, D. Perpétua, todos os cuidados são poucos. Não demora muito, é só esperar um bocadinho pelos resultados e depois vai logo para casa.”
Só tinha passado cerca de uma hora desde que tinham chegado e estavam até admiradas com a rapidez com que tudo estava a correr. Sentaram-se na sala de espera, na esperança de chegarem a casa ainda antes da meia-noite, mas hora e meia passou sem que nada acontecesse. Adelaide procurou informar-se acerca da demora das análises, mas a resposta foi lacónica e sem direito a diálogo: “A senhora tem que esperar. São coisas demoradas. Quando vierem os resultados, logo chamam a sua mãe. ” Às três da manhã, já não suportando mais a espera, Adelaide voltou a tentar saber qual a razão de tanta demora, mas a resposta que obteve foi a mesma. Às cinco da manhã já não conseguia estar sentada. O cansaço e o nervoso iam-se apoderando dela. Teriam encontrado algo de grave nos exames da mãe? A sala de espera já estava praticamente vazia. Começou a sentir-se cada vez mais mal disposta e para não preocupar a mãe, afastou-se um pouco: “ Vou ali ver se como qualquer coisa, a mãe não saia daqui sem eu vir.”
A partir daí não se lembra de mais nada. Quando retomou os sentidos, Adelaide estava deitada numa maca e ouvia vagamente uma enfermeira que, junto dela, procurava saber o seu nome o que lhe tinha acontecido. Enquanto tentava explicar que não era doente mas sim acompanhante e que se tinha sentido mal por estar ali há muitas horas, ouviu uma voz vinda do fundo do corredor: “ Está aqui uma doente sozinha que deve ter sido abandonada pelos familiares. Parece que veio com a filha, mas diz que não a vê há mais de uma hora. O nome dela é Perpétua dos Anjos. O melhor é chamar a Assistência Social para tratarem de a levar para casa.” Adelaide levantou-se num ápice. “É a minha mãe, é a minha mãe, não a mandem embora.”
Entretanto, Perpétua já tinha sido observada por uma médica, que lhe tinha pedido muitas desculpas pela demora, mas que tinha havido uma troca com os exames. Que não estivesse preocupada, porque, felizmente não tinha nada de grave, apenas uma infecção urinária que ia passar rapidamente com a medicação prescrita.
Eram seis da manhã quando mãe e filha entraram no táxi de regresso a casa.
Exausta, Adelaide enterrou-se no banco, fechou os olhos e deixou-se embalar pelo ruído do motor. Após alguns instantes, a voz de Perpétua quebrou o silêncio da noite: “Olha filha, ainda bem que viemos, sinto-me muito melhor e os médicos eram todos uma simpatia. Fartámo-nos de conversar. Foi mesmo uma noite bem passada.”

Isabel Almasqué
Outubro, 2019

Foto de Manuel Rosário

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
  • Hospital visto de dentro, ironia gentil, e a vida é assim mesmo, e continua…

  • O Orgão cria a Função
    O que começou por ser um sistema de apoio na doença a pessoas com gripes, constipações e andaços, evoluiu também para apoio às somatizações de toda gente com doenças imaginárias, ansiedades e flatos..
    Estes serão chamados de abusadores do sistema……
    Mas é civilizado, humano e útil como a história da Isabel demonstra. Uma função fundamental.

  • Esta cena tanto se podia ter passado num hospital, público ou privado, como numa repartição de finanças, num bar ou no aeroporto, era indiferente. Podia ter sido de noite ou de dia. Mais do que fazer um retrato do SNS, para mim, esta história põe em evidência a imprevisibilidade da mente humana e mostra como a mesma experiência vivida simultaneamente por duas pessoas pode ser interpretada e sentida de modo diametralmente oposto. Como diz a Yvette, são as ironias da vida…