De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Dentro de ti, ó cidade

Continuo na minha casa. Depois de tudo metido em caixotes, e negociada uma saída, os proprietários, em cima da hora de assinar o acordo, disseram que não tinham condições para a negociação. Fiquei, não sei até quando, mas feliz por estar confinada na casa onde vivo há quarenta e dois anos.

Percorro a Rua Augusta em direcção ao Rossio. Os montes de lojas de pastéis de nata, gelatarias italianas, lojas de sardinhas de conserva, de pastéis de bacalhau têm todos os estores de ferro descidos.

Nas esplanadas, bandos de pombas em cima das mesas procuram em vão uma migalha, e descaradamente, atravessam a rua, sem qualquer receio do transeunte (que na verdade sou só eu). Já perceberam que já não temos a supremacia, somos muito poucos os que atravessam a Rua Augusta, agora. Pombos e mais pombos por todo o lado. Esplanadas cheias de pombos.

Isto é que é o que se pode chamar, a verdadeira “Baixa Pombalina”.

Na Praça do Rossio estão os africanos do costume. Guineenses islâmicos, vestidos de túnicas, com o seu solidéu em crochet, o taqiyah, conversam aos pares nos bancos da praça, como se nada tivesse acontecido, como se a cidade fosse a mesma de sempre. Vêm nos comboios que chegam à Estação do Rossio, vindos da linha de Sintra, da Amadora, especialmente. Eram da etnia fula, e aqui se encontram para recordar essa Guiné que deixaram há anos.

À volta do Teatro D. Maria, mais cobertores e caixas de papelão.

Três ratazanas, às dez da manhã, atravessam a rua em direcção à Benetton. Devem ser ratazanas em hora de ponta.
E lembram-me os abutres do costume, que nas redes sociais, se atiram contra qualquer medida vinda de um estado democrático. Para tentar a confusão, o descrédito, a desordem. Para ver se agarram a ocasião…

Nos Restauradores, junto às montras que fazem reentrância das lojas da Women Secret, da Mango, da Calcedonia, etc.,só se vêem cobertores, caixas de papelão e sacos plásticos. São os pertences dos sem abrigo que aí fizeram os seu aposentos. Andavam por outros lados, mas agora que não há movimento, aqui estão bem melhor. Aqui é abrigado do vento, plano, e quando faz um solzinho, dá para aquecer os ossos. E é por aqui que vêem à noite carrinhas a distribuir os jantares. Os almoços são em Sta. Apolónia. Andam numa azáfama a buscar refeições, e quando avistam alguém ao longe para pedir esmola, vêm a correr para não perder a oportunidade. Estão ocupados todo o dia com a sua sobrevivência.

Aqui e ali, edifícios em construção erguem-se cobertos de poeira, com redes e andaimes, como esqueletos ruidosos mortos-vivos. A cidade está morta, mas a construção continua. Casas na Baixa-Chiado por um milhão de dólares???Para quem???

Na Rua do Ouro, na Rua dos Sapateiros, na Rua Augusta, na Rua dos Correiros, na Rua da Prata, na Rua dos Douradores, na Rua dos Fanqueiros, na Rua da Madalena, todo o miolo do centro histórico, do Rossio até ao rio, os prédios estão vazios de gente. Por vezes, nas mansardas, ainda há vasos de sardinheiras, visivelmente abandonados por moradores que foram despejados. Qual terá sido o seu destino? Para onde foram? Terão já morrido? E as igrejas projetam uma sombra triste, que só as aves, em bandos, toleram.

Não há ninguém na rua. Não há ninguém nem fora nem dentro das casas. Só hotéis e alojamentos locais fechados a cadeado.

A baixa cheira a tragédia.

Há um excesso de realidade à espera de ser digerida para poder ser descrita. Um excesso tal, que a realidade se tornou ficção.
Um cenário de filme de ficção científica. À noite vejo filmes para apalpar algo real.

Desço até ao Terreiro do Paço, Sua Majestade D. José I, a cavalo, olha incrédulo para a praça deserta. Os cacilheiros chegam e partem vazios…
O Cais das Colunas, de tão só e abandonado, parece ter acabado de ver partir uma expedição que se fez “aos mares nunca dantes navegados”.
O Torreão Poente e o Torreão Nascente, continuam imponentes a ladear a praça. O sol brilha.
O rio, hoje feito espelho, reflete as cores intensas de um cargueiro parado há dias.
Este estado de calamidade é tão imenso, tem em si tanta poesia, que não precisa de literatura. Basta descrever o que se vê.

Venho para casa pela Rua dos Bacalhoeiros, aonde se perfila uma quantidade de gente na porta das traseiras da Igreja da Conceição Velha. No meio dos mendigos maltrapilhos, dos drogados sem dentes, alguns com cães, reparo nalguns homens jovens, ainda com roupa aprumada, falando ao telemóvel. São brasileiros que trabalhavam em restauração, e vivem em quartos aqui pelo bairro.

Embora só distribuam as senhas para os jantares às sete da tarde, às quatro já há gente à espera na rua. Têm medo que as senhas não cheguem para todos, todos os dias parece mais gente. E eu vou para a varanda vê-los partir, com um saco plástico branco na mão com o jantar… Muitos vão para os transportes, em direcção ao metro, aos barcos. Gente que mora longe e ainda vai dividir o seu saco com alguém.

No dia 25 de Abril, vim para a janela cantar a Grândola. Além de mim, só o Sr. Vladimiro, reformado da Lisnave, que mora na minha frente. A seguir ele cantou o hino nacional, mas aí não consegui, entupi, não me saía a voz. Comovi-me por estar ali sozinha a fazer coro com um homem que foi torturado pela PIDE e esteve quatro anos preso em Caxias. Eu, velha menina burguesa, não merecia aquele acompanhante! Haja pudor… Mas no fim, gritei, «vinte e cinco de Abril sempre», e ele respondeu, «fascismo nunca mais».

E silêncio.

As outras centenas de janelas do bairro estavam fechadas, com os seus alojamentos locais abandonados. Foi assim o 25 de Abril de 2020.

O futuro nos dirá o que se passará nestas janelas para o próximo 25 de Abril. A não ser que a aplicação Zoom consiga a montagem de todos os turistas que já estiveram naquelas casas, e que dos seu países enviem imagens à janela, para virtualmente preenchermos este vazio.

Perdemos as nossas janelas, as nossas cidades, resta-nos a saudade que nos alimenta a alma para resistirmos aos fascistas dos vírus e vivermos em Liberdade.

Manuela Carona
Maio, 2020

Fotos de Isabel Almasqué e Manuel Rosário

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São sete da manhã. Gosto de ir à janela espreitar o primeiro eléctrico 28 a passar na Sé. Vai repleto de lisboetas que vão para o seu trabalho. Ou antes, gente cansada de tanto ser despejada para alojamento local, gente cansada de fazer pastéis de nata, cansada de responder em inglês

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos Comentários
  • Boa “Cronica dos Dias Presentes”, Manela. Gostei muito da tua análise descritiva q.b., destituída de ferrugem, fuligem, caliça ou poeira residual.
    Mostras-te consciente da Cidade, apesar de já estar mais animada. Por cá temos menos disso, mais um pouco de ilusão. Um abraço…João Paulo.