De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Ciência e Cultura

“A humanidade tem ficado mais inteligente ao longo dos tempos, como evidencia o desenvolvimento da lança até ao míssil teleguiado, mas não tem ficado mais sábia, como evidencia o próprio míssil.” Theodor Adorno

A palavra cultura é um saco sem fundo onde tudo cabe. Tanto nos podemos referir à cultura popular, entendida como o conjunto de usos e costumes duma comunidade, incluindo a língua, a gastronomia, o artesanato, o folclore, etc., como à cultura erudita, onde se incluem os diversos ramos das artes (literatura, música, pintura, etc.), como ainda à cultura duma determinada época (do Neolítico, do Renascimento, etc.), e por aí adiante. Todas estas acepções de cultura se referem a áreas parciais dum todo mais geral, a Cultura com “C” grande, constituída pela herança civilizacional da humanidade, incluindo toda a sua evolução científica, tecnológica, artística e social e tudo aquilo que faz parte da nossa memória colectiva. Por isso, cultura é tudo aquilo que o Homem acrescentou à Natureza, incluindo, como é obvio, o conhecimento científico.

Desde a invenção dos primeiros instrumentos de pedra, há mais de 3 milhões de anos, até às sofisticadas naves espaciais dos nossos dias, a inteligência humana tem mostrado uma criatividade imparável. De então para cá, os avanços científicos e tecnológicos têm sido astronómicos, muito especialmente a partir dos inícios do sec. XIX. Se pensarmos que o telégrafo foi inventado em 1837, o primeiro computador em 1946, que a dupla hélice do DNA foi descoberta em 1953 e que o Homem só pisou o solo da Lua em 1969, verificamos que o caminho percorrido foi meteórico. Vivemos hoje num mundo essencialmente tecnológico que exige de todos nós competências sem as quais dificilmente sobrevivemos. Tornámo-nos utilizadores permanentes de ferramentas consideradas indispensáveis e das quais nos temos vindo sub-repticiamente a tornar escravos.

Se a ciência é certamente a maior conquista cultural de Humanidade, é necessário, no entanto, distinguir a ciência da tecnologia. A ciência diz respeito ao conhecimento baseado na metodologia experimental, sujeito a revisões e ajustes à luz das novas provas e com uma ética própria. Em contrapartida, a tecnologia consiste na criação de ferramentas ou dispositivos destinados a fins específicos e, em geral, resulta da aplicação prática das descobertas científicas.

Além disso, a tecnologia não tem ética nem sentimentos e os grandes avanços tecnológicos nem sempre serviram os melhores propósitos, nem tornaram a Humanidade mais feliz. A pólvora tanto serviu para fazer fogo de artifício como explosivos bélicos e a aplicação da fissão nuclear tanto serviu para produzir energia eléctrica como a bomba atómica.

Todas as medalhas têm o seu reverso e, na era em que a comunicação nunca foi tão rápida e tão fácil, vivemos cada vez mais isolados apesar de estarmos diariamente expostos na montra das redes sociais e termos perdido a nossa privacidade; temos a vida aparentemente facilitada, mas o olho gigante do “big-brother” nunca nos perde de vista; já não distinguimos o real do virtual e tomamos por garantida qualquer notícia forjada; a informação cai-nos em catadupa através de um clique mas perdemos o conhecimento profundo das coisas e qualquer opinião tem o mesmo peso do que o conhecimento baseado no estudo e no rigor da investigação. Com os avanços da robotização e da IA, corremos o risco de nos transformarmos na própria tecnologia, ficando reduzidos aos nossos avatars.

Já em 1934, muito antes da era da cibernética, antevendo certamente o destino que nos esperava, T.S. Elliot escrevia “Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?”

Deslumbrados por um mundo de abundância e consumo irracionais, onde tudo é quantificável e enebriados por um ambiente de permanente “vaudeville” onde tudo pode ser manipulado, onde o real, o virtual, a verdade e a mentira se confundem, fomos perdendo pouco a pouco a dimensão do humano. Deixámos de ver a floresta para nos concentrarmos apenas na árvore, e cada vez mais, apenas na nossa árvore.

Só a cultura e a ciência nos podem proporcionar uma reflexão sobre as nossas origens, o nosso trajecto, as nossas conquistas civilizacionais e o nosso lugar no universo. Só através da cultura e da ciência poderemos ter a capacidade de fazer um “reset” para nos recentrarmos na verdadeira dimensão do humano. Só a ciência nos pode ajudar a distinguir o real do virtual e a mentira da verdade. Só através da cultura e da ciência, será possível injectar a ética nos nossos comportamentos individuais e sociais. Em suma, só a cultura e a ciência nos podem tornar mais humanos.

Isabel Almasqué
Março, 2023

Foto de Isabel Almasqué

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
  • Boa reflexão!

    • Obrigada, Ana. Espero que esteja tudo bem contigo. Bjs

  • Sancionada pela cultura e tornada possivel pela tecnologia e ciência, a comercialização e mercadorização (“commodification” em inglês) de toda a actividade humana prossegue de vento em pôpa, desde o aluguer de mâes (actualmente 60 mil dolares por gravidez, o que faz 15 mil dolares por quilo de bébé), até á compra de nacionalidades e territórios nacionais como em Portugal.
    Sou mais pessimista do que a Isabel. A Ciência e Tecnologia estão por trás deste aumento da Entropia Cultural, facilitada por um analfabetismo generalizado, com a incapacidade das mutidões de alinhavarem raciocínios simples, com a lógica formal a esfumar-se num oceano de palavreados e mentiras. É o fim da mente !

    • Pois, Não são nem a ciência nem a tecnologia que estão na base da mercantilização da actividade humana, mas o uso que se faz delas. Foram sempre as descobertas científicas que estiveram na base dos grandes saltos civilizacionais da humanidade. Mas enquanto que a tecnologia diz respeito ao “como fazer” as coisas, a ciência diz respeito ao “porquê dos fenómenos. E foi exactamente a partir do momento em que o Homem se começou a preocupar mais com o “porquê” do que com o “como”, que a ciência o fez avançar. Não foi a descoberta do fogo que foi importante, mas sim o seu domínio e a suas posteriores aplicações. And so on…
      Mas tu sempre foste mais pessimista do que eu! Bjs