Em final dos anos 50, Jorge de Sena, com Paulo Quintela, lançam uma colecção das traduções da obra de Brecht na Portugália Editora, onde muitos projectos novos, de jovens criadores, eram apadrinhados, na poesia e no romance, e as traduções de Brecht seriam um grande incentivo para os novos encenadores.
Ilse Losa foi uma das primeiras tradutoras, Fiama Hasse Pais Brandão foi outra e por último fui também eu convidada.
Aceitei com entusiasmo, eu estava em Lisboa a estudar na Faculdade de Letras, mas vinha de Coimbra onde se tinha fundado o CITAC para a vanguarda teatral – sempre que possível: nem tudo passava pelo crivo da censura.
Quando se fala de Brecht pensa-se na dimensão política, revolucionária, da sua obra.
Mas a revolução do ponto de vista das artes de palco, evoluindo de um Expressionismo poético, anarquista, juvenil (como na peça BAAL) para um genuíno teatro de intervenção em que tudo se combina e se expõe é imediata: o texto, a orientação ideológica, já marxista, e o enriquecimento do palco por meio das canções, contribuindo para um entusiasmo que contaminava as almas, como vem a contaminar o seu maior companheiro destas aventuras, Kurt Weill.
Nos Escritos para Teatro, que foi escrevendo de 1933 a 1947, no exílio da Dinamarca, depois da Suécia e finalmente Finlândia devido à ascenção de Hitler ao poder, e que a Suhrkamp Verlag editará em 1963-1964, em seis volumes, defende uma escrita dramatúrgica não-aristotélica, já inspirada no vanguardismo experimental dos primeiros Modernistas da Bauhaus, do Expressionismo, e do teatro chinês que teve ocasião de ver, a dada altura, em Moscovo.
Comecemos no que é definido na POÉTICA de Aristóteles, quanto à tragédia e quanto à comédia: trabalha-se na tragédia a memória dos grandes mitos, em que as personagens são deuses, são heróis que se reconhecem das obras de Homero (recomendo as traduções da Ilíada e da Odisseia, de Frederico Lourenço) e que um destino trágico por culpa própria ou intervenção divina acabará destruindo. Os autores celebrados são Ésquilo, Sófocles, e Eurípides e é pela análise das suas tragédias que Aristóteles define o seu conceito. A tragédia compõe-se de vários actos em que a acção dos heróis é comentada por um coro que figura a voz do povo, ou a meditação da consciência que a situação dramática, seja justa ou injusta, impõe.
O que se pretende, com a representação, é que o público entenda o que é narrado, se identifique com a narrativa e a situação mítica, e reconheça que podia ser ele mesmo a sofrer o que sofrem os intervenientes: a esta fusão de emoções chama Aristóteles catárse (purificação).
A tragédia grega é, no fundo, um ritual de purificação, sai-se dessa experiência, por vezes tão violenta, de alma limpa, de vida renovada.
Ora Brecht não pretende nada disso, antes pelo contrário: não quer identificação, pois isso é perder a noção do tempo que se vive e do que a sociedade, em mudança, exige dos cidadãos.
Quer provocar reflexão, distanciamento inclusivé da demasiada beleza de um texto, quer que o seu público saia da sala desperto e atento para a mudança social que à época se deseja impôr: a de uma utopia, comunista, de liberdade, fraternidade, igualdade para todos.
Algo que ele mesmo, Brecht, veio a descobrir, em 1955, que nunca poderia existir.
É o ano em que publica um célebre poema em que diz que se o Governo não gosta do seu povo, talvez mudar de povo, já que o povo não consegue (em ditadura) mudar de governo.
Mas voltemos então ao que ele chamou de TEATRO ÉPICO, por recuperar a ideia de uma estrutura narrativa, como a da epopeia, mais do que a que fora definida por Aristóteles para a tragédia, em que a acção, suportada no mito, tinha de ser verosímil, coerente e levar a uma fusão de catarse com o seu público.
Como já disse, a ideia de catarse é a que tem de ser afastada.
Ao público pede-se atenção e distanciamento crítico, como na pequena peça A EXCEPÇÃO E A REGRA, uma das que traduzi. A moral do texto é não sigas como regra (era a corrupção, a desonestidade, a violência sobre os mais fracos) aquilo que devia ser excepção, num mundo mais avançado.
Para manter o seu público atento, Brecht usou as canções, que interrompiam a acção e o monólogo ou diálogo dos actores na cena, e porque música e palavra foram sempre entregues aos melhores, penso em Kurt Weill, e em Hans Eisler, os mais célebres (este compôs o hino da República Democrática da Alemanha, RDA) – as canções de Brecht seguiram o seu rumo à parte, em concertos maravilhosos, de sucesso mundial.
Mas na realidade eram arte integrante do projecto e da “lição” teatral, sociológica, política, além de artística, pois nas artes de palco revolucionou as metodologias, com uma influência que se mantém até hoje.
Hoje, o palco é um espaço aberto, um espaço livre.
Podia dar muitos exemplos, de actores, cantoras e cantores, pianistas ou conjuntos que os acompanhavam e o sucesso corria mundo.
Encontramos em Gerd Bornheim, A Estética do Teatro, trad. brasileira de 1992, a tabela que ele retira da edição dos Escritos, da ed. Suhrkamp:
Forma dramática de teatro | Forma épica de teatro |
O palco corporifica uma acção | O palco relata a acção |
Compromete o espectador na acção e consome sua actividade | Transforma o espectador em observador e desperta sua actividade |
Possibilita sentimentos | Obriga o espectador a tomar decisões |
Proporciona emoções, vivências | Proporciona conhecimentos |
O espectador é transportado para dentro da acção | O espectador é contraposto a ela |
Trabalha-se com a sugestão | Trabalha-se com argumentos |
Se conservam as sensações | As sensações levam a uma tomada de consciência |
O homem se apresenta como algo conhecido previamente | O homem é objeto de investigação |
O homem é imutável | O homem se transforma e transforma |
A tensão em relação ao desenlace da peça | A tensão em relação ao andamento |
Uma cena existe em função da seguinte | Cada cena existe por si mesma |
Os acontecimentos decorrem linearmente | Decorrem em curvas |
Natureza não dá saltos – Natura non facit saltus | Natureza dá saltos – Facit saltus |
O mundo tal como é | O mundo tal como se transforma |
O homem como deve ser | O que é imperativo que ele faça |
Seus impulsos | Seus motivos |
O pensamento determina o ser | O ser social determina o pensamento |
Sentimento | Razão |
Repare-se como é importante a diferença final: não se quer provocar o Sentimento, mas despertar a Razão.
Da primeira peça juvenil, expressionista, BAAL, história de um poeta bêbado, anarquista, cruel, chegaremos às grandes lições de A MÃE, ou de VIDA DE GALILEU, entre tantas outras.
O que acontecia outrora, antes do 25 de Abril de 1974, é que as peças de Brecht estavam proibidas. Por isso as edições, mal saíam, eram apreendidas. Mesmo assim circulavam, e A Excepção e a Regra, por exemplo, chegou a Coimbra, ao CITAC, e o José Niza fez uma música para esse pequeno texto que eu tinha traduzido.
No seu último ano de vida José Niza, que hesitava em publicar mas tinha muitas notas sobre o que poderia ser uma Autobiografia, esteve em minha casa e contou-me um episódio do seu tempo de tropa no Ultramar, durante a guerra, de que nunca me tinha falado:
“Eu tinha sido mobilizado para Angola, era médico, psiquiatra, e por isso, embora estando no mato, não estava propriamente envolvido nas primeiras linhas de combate.
Passava muito tempo com os meus soldados, era certo que para os ajudar, física ou mentalmente, mas o tempo, como se imagina era longo…
Um dia pedi ao Capitão que me desse licença para ensaiar com eles um pequeno texto de teatro…e esse texto foi a tua tradução da Excepção e a Regra, que eu a seguir acompanhava à viola…pode parecer impossível, mas foi um tempo de descontracção, de discussão, de divertimento, em plena selva, em plena guerra – não podes saber como nos fez bem, a todos nós…”
Com enorme desgosto, recebi, pouco tempo depois, a notícia da morte de José Niza: deixei, no meu livro deste ano, POEMAS COM ENDEREÇO, um poema em sua memória, em que refiro o vale do seu amor, em Santarém…Estes Poemas editados este anos, e passe a publicidade, ainda não se esgotou, mas é de pequena tiragem, na MARIPOSA AZUAL. Aí está Jozé Niza, com outros que o tempo cruel nos levou. Fica a memória.
O teatro tem isso de formidável: transporta-nos para outro espaço mental, e por isso a atracção de um palco nunca se perderá.
Seja pela emoção, seja pela revolução – o racional dos temas e das situações que podem ser abordadas seja no teatro clássico, seja no teatro moderno, ou ainda neste teatro Épico de Brecht, que muito em especial é feito de chamadas de atenção a um novo comportamento, responsável, moralizante, na sociedade civil, de que todos fazemos parte.
É o que precisamos de novo, agora, neste mundo que de tão global e sem fronteiras, foi perdendo de vista os seus limites: e os limites são e deverão ser sempre de Justiça, Moralidade e Razão, a Razão Prática de já Kant falara no seu célebre Tratado.
Aqui, na pedagogia de Brecht, temos de salientar, para além dos efeitos que leva ao palco, as canções, os cartazes, etc. o sublinhar de que um Povo sem educação, iletrado, não pode assumir as rédeas de uma Governação. Entregar o Poder à nova classe de um operariado ou de um campesinato em revolta (desde os levantamentos de 1905 ou da Revolução de 1917) não era bastante, na óptica de Brecht: faltava o essencial, a preparação que só pela educação se podia obter.
É disso que se fala em A Mãe, a peça escrita em 1931-1932, a partir do romance de Máximo Gorki, do mesmo nome. Existe uma edição actual da ed. Cotovia, na tradução de Lino Marques (Teatro III de Brecht) que vale muito a pena voltar a ler – e talvez encenar? A lição contida é de sempre, e para sempre. A edição da Ática, da tradução feita a duas mãos com Teresa Balté, está esgotada, só em antiquário se poderá encontrar, com sorte; mas vou servir-me da edição do Teatro de Almada, que existe à venda e retoma a anterior, para vos ler um pouco.
Ora oiçam um excerto das passagens importantes, entregues à voz do coro de aprendizes (tal e qual como no teatro grego).
Elogio da Aprendizagem:
Aprende o que é mais simples!
É chegada a tua hora, não é tarde!
Não desistas nunca! É preciso saber mais!
Tu terás de saber mandar!
Tu terás de saber mandar!
Aprende, tu, no asilo!
Aprende, tu, na prisão!
Aprende, tu, na cozinha!
Aprende, sexagenário!
Tu terás de saber mandar!
Aprende na escola, sem-abrigo!
Tu, que de frio morres, estuda!
Tu, que tens fome, lê!
Ler é a tua arma!
….
Tu terás de saber mandar!
Haverá incitação mais evidente, mais pungente, à absoluta necessidade de que todos, na sociedade, têm de se preparar para funções mais altas e mais responsáveis de governação? Um Poder tomado por ignorantes não é poder, voltará a ser algo de irrisório e de grande fragilidade.
Nesta peça de grande apelo ao combate à ignorância, para vencer a Ditadura e a sua opressão dos povos, Brecht deixa no fim a lição da Esperança.
É a Mãe que fala, mas podiam ser Todos…
” Quem ainda vive não diga nunca.
O que é seguro não está seguro,
tal como está, não vai ficar.
Depois dos opressores falarem,
vão falar os oprimidos.
Quem se atreve a dizer: nunca!
Se a opressão continuar, a quem se deve? A NÓS!
E se fôr esmagada, a quem se deve? A NÓS!
Quem foi atirado ao chão, que se levante,
quem se acha perdido, lute,
quem vai parar no estado em que está,
na situação em que se encontra?
Porque os vencidos de hoje vencerão amanhã
e o nunca tornar-se-á agora!”
Passou o nazismo, passou , em parte, o comunismo soviético, caiu o Muro de Berlin, na Europa quem não se deixou vencer por nenhum dos poderes ajudou a criar um espaço de liberdade democrática de que todos deviam poder beneficiar: mas nunca a obra estará completa, sem a participação de todos nesse ideal comum.
Vida de Galileu foi a última peça que traduzi, e que a dada altura foi apresentada por Carlos Avillez, no teatro de Cascais.
No trabalho com os actores, o encenador gostava de aprofundar, pondo à discussão de todos, a ideia central, a “lição” de um texto que retomava para o actualizar, momentos da vida de um cientista como Galileu, matemático e astrónomo do século XVI que, para escapar ao fogo da Inquisição, teve de renegar a sua doutrina, no entanto bem verdadeira: de que era a terra que girava à volta do sol, com o conjunto dos outros planetas e não contrário, como na doutrina de Ptolomeu (de que Camões em Os Lusíadas ainda nos faz eco). Ficou para a história a célebre frase, à saída do seu Julgamento: e puor si move…
Ora bem, na vida deste génio de todos os tempos, de que Brecht se apropria para escrever a sua peça, há uma dupla dimensão, que ultrapassa de verdade a simples crítica a uma Igreja autoritária, dominando escolas de pensamento e comportamentos autorizados ou não e de imediato punidos, se necessário com as temíveis fogueiras de que temos conhecimento, também em Portugal.
A crítica está na peça.
Mas há algo mais: a dada altura a referência à enorme cultura de um dos cardeais, que desejaria proteger Galileu – se tal fosse possível; por essa personagem se alude à cultura científica e não apenas teológica ou doutrinal, dos ocupantes do Vaticano.
E há algo ainda mais importante, no desenho do carácter do cientista herói, que é Galileu: a questão de decidir, à última hora: vai trair o seu conhecimento, a sua certeza, mentindo, por cobardia? Ou vai entregar-se à defesa dos seus argumentos (que um dos cardeais bem sabia que estavam certos) e acabar ardendo numa fogueira?A mentira, cedendo, acabará por ter justificação: se ele morresse o seu precioso manuscrito se perderia de certeza; ficando vivo, poderia divulgá-lo em segredo, como acabará por fazer, pela mão de um antigo discípulo.
Por outras palavras: os fins justificam os meios ?
E sempre?
É magistral o modo como Brecht, na sua contraposição dialética, nos coloca o problema.
A nós, à nossa consciência, a reflexão sobre um tema que foi tão candente no tempo do dramaturgo: como agir perante a tomada do Poder por Hitler, a guerra que se seguiu, a violência dos SS e a perseguição aos judeus, todo o horror do Holocausto e todas as conivências, nos países invadidos.
A nós, à nossa consciência, a reflexão sobre um tema que foi tão candente no tempo do dramaturgo: como agir perante a tomada do Poder por Hitler, a guerra que se seguiu, a violência dos SS e a perseguição aos judeus, todo o horror do Holocausto e todas as conivências, nos países invadidos.
Vida de Galileu é escrita entre 1937-38 e apresentada em 1943. Pensei, ao ler esta peça, que Brecht colocou nela a sua própria avaliação moral de escolhas que tinha feito, ao aderir ao partido comunista, na RDA, para onde tinha ido viver, ao escolher Berlin-Este, uma capital que o comunismo dividira. Ele não ignorava o primeiro pacto germano-soviético, celebrado entre Hitler e Stalin…quando se tratava apenas de invadir a Polónia…não ignorava os massacres que também os soviéticos faziam, enquanto os comunistas pactuavam e ficavam calados.
O destino tem coisas estranhas: é durante os ensaios desta peça (que os críticos consideram, o “testamento” de Brecht) no Berliner Ensemble, a sua sala de teatro, que ele se sente mal e vem a falecer, já em 1956.
Segue no texto, e no palco, o modelo da sua pedagogia própria: antes de cada acto um poema ou reflexão em prosa, que funciona de várias maneiras possíveis: voz off, coro, projecção em painel, as possibilidades são várias; e temos a dada altura, como interlúdio jocoso uma cantoria pelo povo, à base dos panfletos que correram, à época, clamando que Galileu tinha morto a Igreja; mas o que interessa é que por esse meio situa e enquadra, o que se vai seguir, e a atenção que pede ao público, para que não se disperse.
Galileu é por um lado abordado como figura trágica, sábio e cobarde, por se ter assustado tanto diante da Inquisição, quando lhe mostram os instrumentos de tortura. Mas a apreciação do seu comportamento ainda hoje abre a discussão sobre o que ele deveria ter feito: morrer, pois seria certa a sua morte? Ou abdicar da doutrina que sabia ser verdadeira?
Curiosamente é o seu antigo discípulo, Andrea, que ao visitá-lo antes de partir para a Holanda, e ao descobrir que Galileu continuou a escrever os seus Discorsi, expondo a nova doutrina, que subitamente justifica a abjuração e lhe perdoa:
“o senhor escondeu a verdade. Do inimigo. Também no campo da ética tinha séculos de avanço sobre nós” (p.191, Portugália Ed. 1970).
Segue-se um diálogo entre ambos em que Brecht, com mestria, nos deixa a nós a questão de saber o que vale mais no nosso comportamento, se a cedência a outros valores, sejam da fé, ou do conhecimento (ou da política….) vale mais do que a honestidade moral em verdadeira consciência e defesa da verdade em que se acredita.
Ainda hoje é actual esta discussão, FÉ vs. RAZÃO que tendo início no século XVI, com o Humanismo e o Renascimento, ainda continua…
Mas para concluir, com Brecht: na cena 13 (pp.169-175), descreve-se como em 22 de Junho de 1633, perante a Inquisição, Galileu renega a sua doutrina do movimento da terra, enquanto os seus discípulos aguardam notícias. O Papa era uma última esperança, pois tinha sido seu amigo outrora, enquanto Cardeal Barberini. Mas em nova posição, de grande responsabilidade, talvez já não possa defendê-lo. O discípulo que virá a ser, no fim, o mensageiro que leva os Discursos para o resto do mundo, Andrea, exclama para os companheiros:
“…Ele nunca se retractará! Quem não sabe a verdade é só um idiota. Mas quem a sabe e diz que ela é mentira, esse é um criminoso” (p.170).
Ora aqui está, nesta exclamação, tudo o que pode abalar uma consciência…
Adiante vem pela voz do Arauto a proclamação pública da renúncia de Galileu (p.175):
Voz Do Arauto
Eu, Galileu Galilei, professor de matemática e de física em Florença, renego tudo o que ensinei, que o Sol é o centro do mundo, e se mantém imóvel no sue lugar, e que a Terra não é o centro, e move-se. Renego, condeno e amaldiçoo de todo o coração e fé sincera todos estes erros e heresias, bem como quaisquer outros erros e opiniões a que a Santa Igreja se oponha.
Andrea, o discípulo dilecto comenta: ” Infeliz a terra que não tem heróis!”
De 1633 a 1642 Galileu viverá perto de Florença, prisioneiro da Inquisição, até morrer.
Na cena 14 Andrea arranjará maneira de perdoar ao sábio, justificando a sua cedência ao Poder com a ideia de que assim continuou o seu trabalho, acabando a exposição da doutrina que agora poderá ser levada a todo o mundo.
Mas Galileu simplesmente lhe diz, não foi um plano, nesse sentido. Foi medo: “Abjurei porque tive medo da dôr física” (p.193). E depois de um longo monólogo de autocrítica:
” Atraiçoei a minha profissão. Um homem que faz o que eu fiz não pode ser tolerado nas fileiras da ciência”(p.197).
Eis então a verdadeira reflexão que o autor, em fim de vida, nos propõe:
Qual o valor da Ciência e do Conhecimento, face a uma sociedade limitada e oprimida por grande iliteracia, que os Poderes públicos exploram, sejam eles religiosos ou laicos?
E qual o valor da Ética, e do comportamento condizente com ela, entendida como fidelidade aos valores em que se acredita (neste caso o da verdade científica, mas que podíamos alargar ao valor da Liberdade de Pensamento e de Expressão, da Igualdade e da Fraternidade, os ideais de um século XVIII de Lessing e de Goethe, da Razão Iluminada, do desejado entendimento entre as grandes Religiões do Livro, tudo ao mesmo tempo tão distante e tão actual)?
Qual a Regra, qual a Excepção, – recuperando a primeira das suas peças didácticas, com que começámos?
E por aqui me fico….
Yvette Centeno
Lisboa, Setembro 2016