Percorro as ruas do bairro onde vivo, Campo de Ourique.
Olho as casas.
Sem casas não haveria ruas onde passamos pelos outros, e onde passamos principalmente por nós.
Namorar casas, olhando as janelas das casas…
E as casas de fora, olham-nos pelas janelas.
E caminhando persigo, não aquilo que me foi destinado, mas esse calor que vem de me sonhar adentro das janelas, a viver a vida dos outros, da qual nada sei.
Às oito da noite, sai delas uma luz quente, e as salas mudam constantemente de cor com o reflexo da luz da televisão.
Ouvem-se risos, crianças, pratos, talheres, telejornais.
Namorar casas da rua, namorar outras vidas, sonharmo-nos outros…
Já acabaram as filas de quem retorna, ao fim do dia. Agora o bairro retomou a sua tranquilidade.
No rés do chão de um ginásio de judo, pais e avós babados observam pelo vidro as crianças a atirarem-se ao chão, umas às outras.
Ao virar a esquina, noutro rés do chão envidraçado, senhoras de todas as idades fazem yoga.
Ao lado, numa loja de conveniência de paquistaneses, com uma imagem do Monte Evereste na parede, um bebé chora ao colo da mãe. A loja não tem mais que oito metros quadrados. A fruta, exposta á porta, está meia podre. O pai ouve radio com auscultadores.
Num primeiro andar, avisto uma estante castanha cheia de livros, e ouço a voz do jornalista Rodrigues do Santos a falar em vacinas. A sala tanto está amarela, como azul, como encarnada……. Consegue-se avistar uma estrela dourada no topo da árvore de Natal.
De fora, uma imagem do Menino Jesus pendurada na janela. Esta imagem repete-se em todos os prédios, em quase todos os andares. É uma imagem do menino deitado numas palhinhas, com uma coroa em ouro e como fundo, um pano encarnado. Parece a fotografia de uma imagem do Museu de Arte Antiga. É uma imagem triste, severa, como para nos dizer que o Natal não é só consumo e alegria. Que houve um menino rei que nasceu para sofrer. É um menino deus, sem humanidade. É a imagem de um dogma. São os burgueses católicos a dizerem nos «Isto é uma coisa séria, tradicional, é para quem sabe. Tomem lá um menino Jesus com patine, para saberem como é. O Natal é nosso, não há cá pais natais a treparem a parede, neste prédio não há essas pirezas. Nós é que sabemos festejar o Natal.»
Já a chegar a casa, na rua Silva Carvalho, ouço o som de uma milonga. Na associação recreativa Amigos de Apolo, começa a aula de tangos. Desse primeiro andar, apenas se vê o teto decrépito do salão e o brilho da sua bola de cristal. E eu fico a sonhar com salões de bailes em Buenos Aires…. Que mais poderemos querer que um som que nos faça sonhar?
Quem namorará a luz do meu candeeiro? O que fará essa luz por esse alguém?
Às vezes, salvamos pessoas sem dar por isso…
Manuela Carona
Janeiro, 2022
Foto de Manuel Rosário
Isabel Almasqué | 2022-01-05
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Pois é, Manuela, tantos meninos Jesus às janelas e tão pouca solidariedade humana dentro de portas. Parabéns pelo texto.