De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Adriana

Com o seu cabelo loiro arranjado, pequenas pérolas nas orelhas, sempre com roupa de cores claras a condizer, a Adriana era uma moradora atípica da Alfama.
Nasceu na Estrela, frequentou um colégio de freiras de meninas finas. O pai tinha posses. Era talhante, dono do conceituado talho francês. Algumas vezes, com muito orgulho, contava ter ido na infância a Paris visitar a avó, e que se lembrava do mercado de Les Halles, onde esta era florista.
Casou com um mau rapaz de boas famílias. A vida mordeu-as…Ele deixou-a com dois filhos muito pequenos, partiu para o estrangeiro, fugido à policia. Nunca mais o viu. Ficou a viver com a sogra na rua de Belavista à Lapa. Foi ganhando a vida como mademoiselle de crianças e dama de companhia de senhoras de idade. Depois da sogra morrer, começou a ter problemas com o senhorio. Contava que era uma casa enorme, o corredor tinha cinquenta metros…Perdeu a casa depois de este lhe ganhar um processo. Entretanto teve sorte, o senhor era dono de um prédio aqui na rua das Canastras e alugou-lhe, por uma renda baixa, uma mansarda no quinto andar. Perdeu trabalho, pois o que fazia arranjava-se bem na Estrela, mas aqui, era difícil…não tinha contactos com famílias finas. Os filhos emigraram. A casa, embora muito pequenina, estava bem para ela, agora sozinha. Custava-lhe subir os cinco andares, tinha feito oitenta anos, mas nunca se queixava, sempre muito sorridente e educada.
O senhorio morreu e os filhos venderam o prédio a uma empresa de investimentos imobiliários. Conseguiram despejar todos os inquilinos, mas ela ficou, para raiva dos investidores, com o seu contrato vitalício. Os mais velhos foram para a terra, com cinquenta mil euros, e os outros foram realojados em casas no Barreiro. Ela disse sempre que era velha de mais para mudar e que não tinha terra, era de Lisboa…
Há cinco anos que vivia sozinha no prédio. Os proprietários queriam fazer obras de restauro para alojamento local, pressionavam muito a sua saída, escreviam cartas constantemente a ameaçar o despejo por motivo de obras. Ofereciam realojamento em casas sem luz, de trinta metros quadrados e bairros que ela não conhecia. Mas havia ultimamente alterações feitas na lei que a protegiam…
Desligaram-lhe as luzes das escadas, mas com isso podia bem, subia com o telemóvel na mão. Volta e meia, esfregava os cinco lances de escadas, e apesar do aspecto decrépito do prédio, mantinha tudo limpo. Como as nossas casas eram em frente uma à outra e da mesma altura e a rua era muito estreita, falávamos ao fim da tarde das nossas varandas quando íamos regar as plantas.

Há três dias, quando descia as escadas, ao chegar ao primeiro andar encontrou um buraco, os degraus tinham desaparecido. À sua frente e debaixo dos seus pés, havia um poço fundo. Os vizinhos chamaram os bombeiros para a ajudarem a sair. O presidente da Junta prometeu-lhe que ia accionar os meios competentes para obrigar o proprietário a repor as escadas. Falei à minha advogada a pedir para a receber. Encontrar-se-iam às oito da noite depois de uma reunião… fiquei mais sossegada! Pedi-lhe para ela dormir na minha casa nessa noite, “que não, muito grata, mas que os bombeiros vinham ajudá-la a entrar, que ainda tinha a sua casinha…”
Foi anteontem.
Não vi mais a Adriana nessa noite, devia ter chegado tarde da advogada.
Ontem de manhã cedo, tocam-me à campainha, “que tinha que tirar o carro da rua, estava a impedir a entrada da ambulância”. A Adriana tinha tido um ataque do coração, mas ainda teve tempo para chamar o INEM. Tinha um sms no telemóvel, da véspera às onze horas: ” Muito obrigado por tudo, gostei muito de falar com a Dra. Suzana, falo-lhe amanhã, foi um dia difícil, falei com muita gente, vou descansar…”. E durante o dia de ontem não soube mais nada dela.
Hoje iria tentar saber como estava, não sei por quem…talvez ir lá ao S. José…mas entrei na mercearia e soube logo que ela não tinha sobrevivido.
Tornei a ler o sms de ontem à noite “um dia difícil…vou descansar…”
Descanse em paz querida Adriana.
Ficarei a observar a sua linda varanda tingida do rosa, encarnado e branco das sardinheiras. Estão bem regadas, estou certa que ainda vão aguentar assim, mais uns tempos…e eu acredito que a Adriana vai estar por aí enquanto elas durarem…

Manuela Carona
Setembro, 2019

Galeria de Imagens

Fotografias de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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São sete da manhã. Gosto de ir à janela espreitar o primeiro eléctrico 28 a passar na Sé. Vai repleto de lisboetas que vão para o seu trabalho. Ou antes, gente cansada de tanto ser despejada para alojamento local, gente cansada de fazer pastéis de nata, cansada de responder em inglês

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos comentários
  • Adorei esta história. Comoveu-me imenso.
    E pergunto : porque continuamos a tolerar isto ?? Esta desumanidade e crueldade…??
    O que podemos fazer para pararmos rapidamente com isto`?

    • NÃO SEI O QUE SE PODE FAZER, EU PROPRIA NESTE MOMENTO SOU A ADRIANA…VOU TER QUE SAIR E ACEITAR O REALOJAMENTO QUE TÊM PARA MIM. NÃO SEI…

      • Pobre gente, os cifrões acima de tudo 👹👹👹👹. Estou a ver Ricardina e Marta, D. Manuela Carmona tão linda 👍👍👍👍😘😘😘

        • Carona 😀

      • Este país está minado pela corrupção a todos os níveis. Espero que resolva o seu problema rapidamente!!!! 😘😘😘

  • Triste história. Quantas e quantas Adrianas haverá por essa Lisboa fora?

  • As Adrianas sucedem-se…eu sou uma delas…

  • Honra à memória de quem mesmo assim batalha, Manuela. Texto tão belo de evocação,, não desista agora…

  • Obrigado Dra. Yvete Centeno. Tenho mesmo que desistir e ir embora., Mas não esqueço quem fica,.ou .quem,, na sua ingenuidade, julga que fica,… pois a todos vai acontecer o mesmo…Só os que têm casa propria ficam, e mesmo assim …Ficam sozinhos em ruas desetas que no verão têm uns turistas. Obrigado.

  • Os que ficam, ficam sozinhos em prédios cujo os proprietário fazem os possíveis para degradar (só assim conseguem a licença para” remodelação profunda”, que dá origem ao despejo dos inquilinos). Ficam em ruas desertas, onde as mercearias e os talhos e as tascas que frequentaram toda a vida, fecharam. Ficam abandonados à sua sorte, até serem obrigados a sair. Nos meses de Verão, ainda se vêem turistas nos alojamentos locais, ouve-se falar francês… Vindo o Outono, é uma desolação. Já não há crianças para irem e virem da escola. O prédio e a creche já fecharam há muito, são prédios de alojamento local em S. João da Praça.. Os mais velhos não saem de casa, já não têm lugares de referencia onde ir..
    Os proprietários do meu prédio, conseguiram luz verde para um projecto para hotel. Já denunciaram o contrato. Procuro uma solução,…

  • Bonitas fotografias.