– Olha! Sim, tu que me estás a fotografar. Tu mesma. Estava à tua espera.
Olhei em redor mas não havia vivalma. Aproximo-me incrédula da sereia.
– O meu mundo não foi sempre assim, desmoronado, como tu o vês.
Não compreendi de onde vinha a voz, mas sentia uma enorme atração pela sereia. Cada passo que me aproximava parecia dissolver a ligação ao presente, às formas, às cores…
– Vais encontrar uma janela partida, entra e não leves medo nos olhos.
Por momentos quase que senti a magia quebrar-se, como uma sacudidela do fundo do corpo. Seria o tal medo? Respirei fundo, sentia os pés a pisar nuvens, mas logo ali ao lado vi a janela de vidro estilhaçada. A janela mostrava-se aberta como um convite a entrar.
Não deixando o coração apertar-se demasiado, baixei-me e entrei. Ainda ouvi a voz a dizer:
– Boa viagem!
Ao pôr o pé no chão, percorreu-me um remoinho como se mil estilhaços se unissem. A meu lado, numa parede espelhada vi a forma atlética duma nadadora olímpica. E foi só quando sacudi a roupa e me endireitei que percebi que eu era o reflexo, eu era a nadadora.
Não tive nem tempo para pensar. Do enorme Hall de entrada Miss Popova vinha em direção a mim:
– Onde te meteste Anastasia? Estão todos à tua espera. Logo tu que és a promessa do dia.
O som da Internacional Socialista, cada vez mais alto, arrancou-me do meu torpor, numa correria. Entrámos numa magnífica piscina, janelas de alto a baixo deixavam ver o verde das montanhas ao redor.
De pé, os representantes do Partido lançaram um olhar crítico, enquanto eu, à pressa, tirava o roupão, ajeitava a touca, os óculos e me colocava na partida.
Enchi o peito de ar e ao som do tiro, dos gritos e aplausos dos espectadores mergulhei, no meu melhor estilo, decidida a ganhar.
Splash! O contacto da água com o corpo acordou-me. Mas a voz da sereia ressoava forte nos meus ouvidos molhados:
– Obrigada por me teres dado vida por escassos momentos. Além disso, agora levas-me viva na tua memória. Não sou só de pedra. Não te esqueças, dizia com tom enfático, o abismo, a mudança, a elevação e a queda estão sempre a emergir. Por isso, vive com olhos sem medo! Assim vês mais. E quem sabe, onde estás agora, ainda haja tempo para que nem tudo se estilhasse.
Olhei as nuvens que passavam altas à minha janela. Aquele céu não parecia o mesmo de sempre.
Pensei na sereia à porta do complexo desportivo de Jermuk, na Arménia. Um daqueles lugares majestosos, abandonados no colapso de lógicas político-económicas.
Hoje é 2020, tempo de pandemia.
Já passou aquele espaço silencioso de pausa, como que se aos mundos se lhes fosse oferecido um tempo de reflexão. Ao longe, ainda se ouvem ecos desconhecidos do digladiar das forças socio – político – económico – tecnológicas. Se ao menos, como disse a sereia, conseguíssemos sem medo olhar e ouvir as novas formas emergentes duma sociedade mais justa, menos obcecada pelo lucro, onde o stress fosse mais intencional e não tão imposto pelo medo de perder a corrida.
Minnie Freudenthal
Julho, 2020
Galeria de Imagens
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário