Era uma vez um homem que vivia do comércio. O homem tinha uma loja de brinquedos num Centro Comercial em Lisboa. No mês de Natal vestia o seu melhor fato de tom escuro, envergava uma camisa de bom corte e colocava um laçarote de cerimónia, que lhe dava um ar de clown bem-humorado.
Fazia as honras da casa, cumprimentando os visitantes com uma vénia de artista de circo, continuando a sua faina de vendedor de sonhos, sorridente. Apesar da indumentária de festa transportava embrulhos de um lado para outro do recinto, numa azáfama de formigueiro.
Abrilhantava as montras com as bonecas mais faladas na época festiva, nos anúncios de televisão, as que choravam como crianças e bebiam leite imaginário por um biberão aerodinâmico, as que andavam de patins, as barbies mais modernas e em versão estilizada.
Os jogos de computador, as play stations e bonecos articulados, numa outra secção, os heróis dos filmes de cartaz natalício, os consumíveis didácticos noutra área de conhecimento, tudo decorrendo num festival de consumo, aliciante para os mais novos. Sorria educadamente cheio de entusiasmo, orgulho e sentido de aventura, tanto para as crianças como para os mais graúdos.
Parecia que a energia que transportava nunca iria acabar, como os seus bonecos que perpetuavam infâncias. Um dia deixou de vender magia, mesmo no recalco do Natal.
A loja vestiu-se de papel pardo nas montras, os balcões desmantelados e o dono da loja de brinquedos a evaporar-se do mapa. Nova loja agora de mobílias, novas pinturas, cheiro a cola, tintas, ruído de serras e black & decker.
Entretanto as pessoas passavam atarefadas, por vezes descansavam no banco de pedra colocado estrategicamente em frente à antiga loja dos brinquedos, mesmo ao lado da geladaria, outras vezes liam o jornal enquanto apreciavam o dito assento, muitas conversavam ou pousavam simplesmente as compras no local adjacente ao espaço que passou a vender mobílias, depois roupas, de seguida congelados, passando a boutique gourmet, seguindo-se-lhe artigos de decoração e finalmente loja de malas e sapatos de marca famosa…a sucederem-se sistematicamente, numa angústia reprimida.
Um estranho vigilante fazia o controlo das entradas e saídas dos vários negócios que iam sucumbindo, no antigo espaço de venda de sonhos às crianças.
A figura que vigiava o espaço, de cabelo ralo, colado à cabeça, emagrecido e possivelmente louco era uma personagem curiosa que persistia em sentar-se em frente à antiga loja dos brinquedos, sem dela tirar os olhos, como que a protegê-la, gesticulando e fazendo movimentos estranhos, para alguém menos atento.
Inicialmente ninguém dava por ele, invisível aos olhos dos transeuntes do Centro, careca com uns poucos cabelos longos em farripas sobre os ombros, uns trapos de cor indistinta a transportarem um corpo aparentemente sem préstimo.
Chegava sempre à hora de abrir a loja e só saía pelas 22 h, com um curto intervalo para o almoço.
No mês de Natal percebia-se nele uma cuidada mudança, uma camisa clara, um laço escuro no pescoço, um fato velho aparentemente de cerimónia em tom escuro a cobrir-lhe o corpo magro e uma estranha vontade de interagir com o ambiente.
Num sussurro podia ouvir-se no meio do torpor, frases aparentemente desconectadas: Vendemos sonhos! Não se pode roubar a um homem a educação… soava nos seus lamentos. Ostentava subitamente uma estranha elegância, uma postura orgulhosa ficando mais erecto, quase distinto e por momentos o tempo parecia suspenso pela força da sua presença.
Em movimentos subtis, desenrolava então as mãos aladas magras como aves famintas e desenhava um voo, uma quase dança, imitando na sua mímica, laços com os dedos.
Estava a embrulhar os presentes de Natal.
Este fim de ano ainda não o vi, mas a loja de sapatos e malas de luxo permanece com o rótulo de Vende-se na vitrina.
Leonor Duarte de Almeida
Dezembro, 2018
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário
isabel almasqué | 2018-12-31
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Leonor, não podíamos ter uma história mais apropriada para esta época. Muito bem escrito e a demonstrar bem a sensibilidade que pões em tudo o que escreves.