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A Alice, o monte e o melro

Vinha do Norte com o Manuel quando a Alice ligou. Tinha uma dor na região lombar. Aproveitei a energia da conversa para marcar um encontro.

Há meses que dizia a mim própria: vai visitar a Tia Alice, aquela porta da vida com sentido único só pode estar mais próxima.

Foi logo na segunda-feira seguinte, 22 de Julho, que o Manuel eu nos sentámos com a Alice, a comer presunto e a beber um copo. Os fins de tarde deveriam ser todos assim.

Duas semanas mais tarde, a caminho do Sul, liga de novo a Alice. Estava no médico. Queria saber se o Manuel estava em Lisboa, parece que tinha “um objeto” no estômago. Nada fazia sentido e aconselhei-a a ir ao Hospital.

Entretanto, depois de peripécias e atrasos, chegámos, no pico do calor, ao Monte da Clareira, a sul de Grândola. Ia ser a nossa casa durante uma semana. Gostei logo do Monte. Tranquilo, muito isolado, simples, sem jardim, sem regas, sem piscinas. Só a casa ali a olhar as colinas do Alentejo.

Havia que despachar, arrumar as provisões no frigorifico, comer e ainda dar um mergulho no mar. Mas, na chagada à casa, quase pisei um ser que piava. Ali à nossa porta um pássaro recém-nascido, à chapa do calor. Ninhos vazios. Pais nem sinais deles!

Improvisámos um ninho, mastigamos arroz que comeu com voracidade e deixamo-lo em cima do calorzinho do wifi.

Estaria vivo na volta da praia? Estaria vivo? Era a pergunta que fazíamos todos os dias sempre que o deixávamos horas sem comer até ao nosso regresso da praia. Mas o passarinho, que em tudo se parecia com um melro, foi crescendo. Já me deixava fazer o café da manhã e esperava para ser alimentado. Fomos melhorando o menu, treinos de voo, poleiros para fortalecer as pernas. Tentámos um ninho no exterior só para o encontrar rodeado de vespas. Voltou para dentro. Durante o dia ficava à janela e à noite no calor do wifi. Cresceram-lhe lindas penas e espantava-nos a sua inteligência social.

No dia 16 de Agosto acordei com uma mensagem que não reconheci logo: “a Mãe morreu! Estás em Lisboa?” Eu não estava em Lisboa e a mãe que morrera era a Tia Alice.

Com a Alice no meu coração fui alimentar o melro. O Manuel construíra uma ratoeira de insetos e vespas, dissecava e tirava os ferrões, uma dieta melhorada.

Não foi a morte do cisne. Foi um choque , um abrir e fechar de asas, um olhar esbugalhado e um repentino colapso. Algum ferrão que escapara. Ficou encolhido na palma da mão. Tão pequenino voltou para a terra do Alentejo.

Podia ser uma história de espíritos. De bons espíritos, claro, que a Tia Alice teria enviado pelo melro e que com ela partira.

E assim ficaram ligados a Alice, o Monte e o Melro.

*Alice Pinto Coelho, dona e alma do Bar Procópio em Lisboa, faleceu a 16 de Agosto.

Minnie Freudenthal
Setembro, 2024

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Alice Minnie Freudenthal, médica Internista pelo American Board of Internal Medicine e Ordem dos Médicos Portuguesa. Áreas de interesse; neurociência, nutrição, hábitos e treino da mente. Curso de Hipnose clínica pela London School of Clinical Hypnosis. Curso de Mindfulness Based Stress Reduction. Palestras e Workshops de diferentes temas na área da neurociência para instituições académicas, empresas e grupos.

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Últimos comentários
  • Que bonito!… Mais umas lágrimas que me caem.

  • Oh Minnie. Que história linda!

  • Lindo. Minnie. Querida Alice…