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A VIDA EM DELITO: OPÚSCULO PARA PENSAR E DESENHAR A VIDA EM COMUM

Em 1994 foi publicado um ensaio exótico, de contornos noir, muito estimulante à meditação conspirativa. David Ronfeldt preparou um estudo para a CIA, para o Office for Researche and Development, acerca do Complexo Húbris – Nemesis. Este estudo (“Beware the Hubris-Nemesis Complex, A Concept for Leadership Analysis”), encomendado pela Divisão de Investigação de Segurança Nacional, enquadra-se no que durante a Guerra Fria se designou de futurologia e hoje mais conhecido por prospectiva (Forsight). Um pensamento estratégico e multidisciplinar, articulado a partir da teoria dos jogos, que visa sobretudo antecipar cenários a longo prazo em sectores chave como a ciência, economia, sociedade, tecnologia e ambiente.

Com uma evidente componente militar e fortemente desenvolvida até ao delírio durante a Guerra Fria, a futurologia emerge não como um desiderato criativo e emancipador da humanidade mas como a ciência do Armagedão. Durante a Guerra Fia o elefante na sala é a bomba atómica e o futuro é vislumbrado como um lugar terminal de um devir histórico à mercê dos anátemas do presente.

Este delicioso e prolífero campo de estudos serviu de inspiração a Stanley Kubrick para rodar Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb – uma sátira negra que leva ao deboche as teses de Herman Kahn.

Herman Kahn celebrizou-se como notável Think Tank da RAND Corporatiton, uma ONG que presta consultoria à CIA (a mesma que publicou em meados dos anos 90 o relatório de David Ronfeld). Sob o lema de “pensar o impensável” Herman Kahn defendeu que é necessário prever o pior. E dentro do pior antecipar o possível, o provável e o preferível, tudo – claro está – dentro do pior.

A CIA leva a distopia a sério, e é nesse contexto que surgem estudos muito sui generis, dissertações híbridas de ficção científica e mitologia grega – matéria prima da futurologia – dignas de uma estética Marvel.

No estudo sobre a húbris lemos que se trata de um termo grego que oferece várias traduções e que significa “tudo aquilo que passa da medida”, uma forma de desmesura e violação. A húbris é expressão de uma afronta insultuosa aos deuses, um delito gravíssimo que desafia a ira do céu. Os actos hubrísticos são por isso punidos pela deusa Nemesis, que na mitologia significa aquela que “dá de volta o que é devido”.

Os mitos fundadores oferecem um abundante reportório de exemplos da Húbris e de Nemesis (Prometeu rouba o fogo aos deuses ficando amarrado eternamente a uma rocha e servindo de alimento a uma águia; Ícaro sobe alto demais e derrete as asas; Narciso apaixonado sucumbe à sua própria imagem; Édipo incestuoso pune-se a si mesmo cegando os olhos).

No estudo acerca da húbris de 1994, depois da introdução mitológica, Ronfeldt apresenta algumas personalidades históricas que classifica como agentes messiânicos portadores do complexo Hubris-Nemesis, entre eles estavam Fidel Castro, Saddam Hussein e Kadaffi. A futurologia desta época – que vai da Guerra Fria ao 11 de Setembro – está convicta que a eliminação das ameaças inaugurará um período de paz perpétua. Essa convicção, suportada pelo poderio militar, levou Francis Fukuyama (um dos maiores intelectuais do século e conselheiro de George W. Bush) a anunciar precocemente, no final dos anos 90, a famosa tese do fim da história e do último homem, quando o planeta inteiro – pacificado e lúdico – se convertesse numa unificada democracia liberal nas mãos de exímios gabinetes de gestão. O mundo imaginado como um recinto de prosperidade e recreio, liberto de agentes messiânicos portadores do complexo Hubris-Nemesis.

Mas eis que um pressentimento hubrístico sobressaltou a vida dos mortais. A percepção e consequência das mudanças climáticas e do aquecimento global, a extinção galopante das espécies, a desflorestação e monocultivo, a hiperprodução de plástico e desperdício, a escassez de água, tudo isso multiplicado pela pressão da expansão humana no planeta e uma cultura global alicerçada no direito ao consumo e ao turismo infinito, por sua vez alicerçado na deslocação massiva e no petróleo – tudo prerrogativas de um bom viver ocidental, para além do bem e do mal.

A futurologia do novo milénio ajustou a escala do “pensar o impensável” e debaixo da sua lupa descobriu uma nova velha ameaça: não se trata de nenhuma singularidade histórica mas da própria espécie humana. Simultaneamente ameaçada e ameaçadora, a o bicho humano surge ele mesmo como hospedeiro da húbris. Os humanos descobrem-se a si mesmos como uma força geofísica à escala planetária desafiando o mar, a terra, os rios, a atmosfera e todos os seres vivos no planeta. Milhares de milhões de anos de evolução adaptativa resultam no advento da espécie humana, cujo impacto da sua existência resulta a uma distopia inédita, uma disrupção sistémica e em todas as frentes.

O advento da bomba atómica e do terrorismo são meros epifenómenos de um advento muito mais vasto denominado – não sem controvérsia – o Antropoceno.

O Relógio do Juízo Final, criado em 1947 sob a ameaça da bomba atómica, nunca esteve longe da Meia-Noite, a hora simbólica do colapso. A partir de 2007 o painel de especialistas que fazem o acerto da hora, passou a incluir no boletim, disrupções relacionadas com as alterações climáticas.

O planeta não se salvará pela irradicação de titãs maléficos que nele proliferam. A emancipação da humanidade chega-nos pelo apelo urgente de agir no planeta enquanto espécie, o novo sujeito histórico para o qual não há narrador ainda.

A escala de pensamento é inédita e muito controversa, mas ela é fundamental à futurologia do novo milénio. Projectos como “Planet City” de Liam Young dão sinal dessa brutal novidade. Imagine-se a criação de uma cidade hiper-densa que pudesse albergar 10 biliões de pessoas, em economia circular, libertando o resto do planeta para autoregenerar a vida selvagem (rewilding). E em nome de quê? Em nome de séculos de colonialismo, expansionismo, extração e exploração, em nome de uma ofensa (hubris).

O planeamento e desenho da vida em comum tem um legado militar, fértil à paranoia, controlo e vigilância, e um legado lúdico sustentado no consumo e no trabalho. Daqui para a frente sabemos simplesmente que o planeamento e desenho da vida em comum terá que redimensionar os valores e a escala de interacção, sob o risco de tornar a vida humana obsoleta e hubrística.

Conta o mito que diante das portas de Tebas, Édipo encontrou a Esfinge, metade leão e metade mulher, ameaçando estrangulá-lo se não adivinhasse o enigma: qual a criatura que pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia dois, e à noite três?

Sempre soubemos qual era a resposta.

Ivo Lima Carmo
Setembro, 2021

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Nasceu em Lisboa em 1979, estudou Filosofia e vive em Berlim, onde trabalhou como jardineiro, vendedor de revistas e empregado de mesa. Em Portugal foi distinguido em 2008 no Concurso Jovens Criadores e em 2012 venceu o Prémio de Ensaio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores com a obra Do Paraíso. Autor do livro O Longe Oeste, Na Senda do Sete-Estrelo pela editora Epubli.

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