Isabel Hub Faria, Os Meus Primeiros Pronomes Pessoais
Nem sempre me apercebo de quantos leitores chegam a ler os meus blogs, que escrevo há já tantos anos.
Mas de vez em quando, como aconteceu agora com CARMES, de Paulo da Costa Domingues, verifiquei que só ontem ele foi lido por quase 200 pessoas. A maior parte aparece nos mapas, mas não nos comentários. Não tem mal, leram, isso é que é importante. E que a seguir comprem, esse é o prémio ao autor.
Estou se calhar a repetir-me, com este livro de Isabel Hub Faria, ilustre especialista de linguística, que agora publica uma obra que chamou de romance, mas que é na verdade uma autobiografia atravessada pela análise brilhante de como ao crescer se adquire uma relação especial ( e que de algum modo vai definindo o destino e a vida ) com os pronomes ditos primeiros ( eu, tu, ele, nós, vós, eles) e através dessa aguda percepção uma nova consciência de si, dos outros, da sociedade e do mundo. Está no livro a explicação de como ela cresceu, e de como nós, ao fazermos idêntico auto-exame, podemos eventualmente crescer também.
Como sempre faço, pego no livro, sinto que me agrada na mão, vejo a capa, a contracapa, o papel e a letra agradável de ler. Só assim continuo, gosto de livros pequenos, mas grandes de narrativa genuína, subtil, original e com alguma ironia, por vezes até cruel.
Em Isabel descubro tudo isto. E uma reflexão profunda sobre o que é ser-no mundo, na aquisição difícil dessa mesma consciência. Não digo estar, digo ser.
Sou bastante mais velha, conheço bem a geração que ela ainda descreve, no capítulo do eu da infância, em família tradicional, casa em que convivem mãe e tios e avós, a descoberta da leitura e dos contos para crianças, como o do chapeuzinho vermelho que também eu contava aos meus filhos, à noite, com eles já na cama. Ainda hoje rio quando o Bernardo me conta que durante anos, ao ouvir o conto, julgava que se tratava mesmo de um chapeuzinho de verdade e não de uma menina, e não percebia nada do resto que acontecia. Ele tinha três anos, o Miguel a seu lado noutra cama, tinha dois e adormecia logo. Nas idas à escola, primeiro pública, depois em colégio diz a autora que já se apercebia, aos dez anos, das diferenças entre o eu e os outros, as outras meninas que não tinham, como ela, mimos especiais na merenda que levavam. Primeira nota, de carácter pessoal e social, de alguém que observa com atenção para tentar perceber.
No capítulo dedicado ao tu, já absorvida e ultrapassada em parte a condição familiar, procura-se a alma gémea, o duplo, o alter ego que complete uma consciência de que um eu, só por si, nos deixa na vida incompletos. E surgem vários tus, que a narradora ( eu ia dizer autora, porque há um tom tão vivido, tão confessional, neste dito romance) marcando cada um deles uma nova apreensão da consciência de si, mais até do que do outro. É o tu que permite uma gradual afirmação de um eu que se deseja cada vez mais livre, na aceitação ou negação das normas que regem, na sociedade autoritária daquele tempo de Ditadura, sentimentos e comportamentos. O terceiro tu, com a jovem narradora já tendo consciência do que na verdade pode ou não esperar duma relação, atravessamos com ela os cafés do tempo, que também conheci bem, era o espaço de encontro de poetas e artistas que não se enquadravam no modelo vigente, e ali podiam estar apenas com um café à frente, e falar de tudo, menos de política (se fossem demasiado ouvidos seriam incomodados): Monte Carlo, Monumental, Brasileira e outros ainda eram pequenos focos de liberdade intelectual.
Mas não é tanto disso que a autora nos quer falar, é antes do seu percurso, no caminho de um eu para um tu que declarou ser afinal como toda a gente, desejando casar, ter filhos, uma família tradicional. Tudo o que a jovem não queria, estando já a desenhar-se uma outra forma de desejo, não por eles mas por elas, transitando assim para novos pronomes pessoais, de novas relações.
No capítulo de “ele ou ela, o, a, lhe” a narração amplia a questão do desejo, do impulso que se torna imperioso e a que se cede, primeiro com o prazer da entrega assumida, depois com a repulsa da recusa sentida, porque entretanto o pronome já tinha sido trocado, de um ele para ela, sendo esta a definitiva escolha. A relação será trágica, no fim, mas deixo ao leitor a curiosidade de ir lendo, porque resumir tiraria parte da emoção, e parte de um tempo que era aquele, feito de desafio e dôr e consciência de alguma responsabilidade em relação a um outro (outra) de que se tinha separado como quem corta uma planta pela raiz, num terreno difícil. Apagada (até porque morre entretanto) esta outra da sua vida, a narradora segue o seu caminho, de académica no percurso habitual: bolsas de estudo, congressos, seminários, etc. Companheirismo normal, quando existisse.
E chegamos ao capítulo do nós: na verdade um novo ele, um novo tu redescoberto noutra fase da vida. Mais maturidade emocional, sexual? Mais uma descoberta, a de uma androginia cuja marca é antiga, arquetípica, bem explicada em Platão.
A mulher, que agora é já mulher, vivida e experiente, descobre-se como bissexual. O amor, o desejo, pode em qualquer momento surpreender e lemos como é detalhado o prazer que a mulher sente na nova relação:
“Sempre que me lembro do nosso primeiro contacto físico, a sequência de imagens desfila em câmara. Ar livre. Dunas. Mata mediterrânica. Movimentos vagarosos, respiração funda, olhos surpreendidos à procura da expressão de outros olhos, o desejo a crescer sem sobressalto, a confiança a procurar lugar, um pequeno esgar, também a timidez, depois a felicidade. Tenho o seu sexo dentro de mim durante todo o tempo de nos pertencermos. A descoberta de nós é mútua. A descoberta de cada um de nós nesta partilha é tão funda e perturbadora que me parece impossível alguma vez ignorá-la. Ele diz, com voz rouca “Obrigado!”. E chora. E eu, reconheço, acabo de descobrir uma parte de mim ainda por decifrar. Somos sorrisos virgens. Surpreendidos. Felizes com a nossa descoberta. Daqui para a frente, penso, vou ter de viver com a minha bissexualidade. Vivo com uma mulher e o meu corpo deseja aquele homem. Não sei como vai ser, mas há-de ser assim” (pp.55-56).
Ocorre-me, talvez porque Isabel deixou Germânicas, que trocou por Românicas, um dos mais belos poemas que Jacques Prévert escreveu, e eu tive o privilégio de ouvir em Paris, cantado por Juliette Gréco: Je suis comme je suis.
Je suis comme je suis
Je suis faite comme ça
Quand j’ai envie de rire
Oui je ris aux éclats
J’aime celui qui m’aime
Est-ce ma faute à moi
Si ce n’est pas le même
Que j’aime à chaque fois
Je suis comme je suis
Je suis faite comme ça
Que voulez-vous de plus
Que voulez-vous de moi
Je suis faite pour plaire
Et n’y puis rien changer
….
Je suis comme je suis
Je plais à qui je plais
Qu’est-ce que ça peut vous faire
Ce qui m’est arrivé
Oui j’ai aimé quelqu’un
Oui quelqu’un m’a aimée
Comme les enfants qui s’aiment
Simplement savent aimer
Aimer aimer…
A narrativa segue, com “eles ou elas”, e uma rápida digressão pela distância e pela diferença entre uns e outros, na vida pessoal, profissional, académica e depois da Revolução de Abril, partidarizada da pior maneira, maçons vs. opus dei. Vale a pena ler a Nota final, que ajudará a entender um pouco mais. Mas foi tão genuíno, tão directo o discurso até aqui, que só podemos elogiar esta prosa de confissão, não negando, antes expondo o assumir de uma consciência de diferenças e desvios, como o da bela capa escolhida, de autoria sua, de quando estava em Berlin, e que se intitula precisamente O Desvio.
A autora, como muitas das escritoras de hoje em dia, nova geração nascida já liberta, não evita os temas fracturantes: violação, aborto, homossexualidade ou bissexualidade. As xenofobias com que se depara em meio Académico, nos EUA, onde esteve como bolseira, e a deixou surpreendida. A recusa do outro é agora geral, e tem de ser combatida. Isabel Hub Faria aqui está, livre e pronta, como é. Esperemos um seu segundo livro.
Yvette K. Centeno
Maio, 2019
Yvette Centeno | 2019-05-20
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O melhor livro dos que li recentemente.
Escrita nua, sem peias, Um espelho de outrora e de agora.