A propósito das tapeçarias de D. João de Castro
As dez tapeçarias do museu de História e Arte de Viena d’ Áustria relatando a entrada vitoriosa de D. João de Castro na cidade de Goa em 22 de Abril de 1547, após a vitória do segundo cerco de Diu, e as campanhas militares que se lhe seguiram, são uma obra do maior valor artístico e documental cuja história se encontra envolta em mistério que até hoje nenhum documento veio dissipar. Seria suficiente a sua grande beleza e mestria artística expressa em fios de seda, ouro, prata e lã fina, traduzindo em estonteante pormenor, ao longo de várias dezenas de metros quadrados, as imagens que nos transportam a um tempo e a um espaço marcantes da nossa história. Mas a essa experiência estética que oferecem alia-se o importantíssimo valor histórico e iconográfico ao constituírem o mais antigo documento visual dos acontecimentos que relatam ( Em 1571 surge o poema de Jerónimo Corte Real acompanhado de gravuras minuciosas relatando a vitória de Diu).
Desde as campanhas de Carlos V em Túnis em 1535 que não se tinha visto tamanha vitória contra o poderio muçulmano e a sua importância geo-estratégica e económica era imensa. Crónicas e panegíricos publicados em Portugal e na Europa (Louvaina, Paris, Roma…) irão elevar os feitos de Castro a proporções épicas quase míticas, garantindo a fixação da sua memória.
O cortejo triunfal, ao modo da Roma antiga, com que D. João de Castro celebrará a vitória em Goa, fazendo derrubar um pano da muralha para a sua entrada na cidade engalanada para o receber (…e pelas ruas havia dez mil perfumes e cheiros excelentes…Leonardo Nunes, crónica de D. João de Castro), num desfile dos homens, armas, troféus, cativos, terminando com a sua coroação com a coroa de louros sobre a cabeça descoberta, é minuciosamente representada em quatro das dez tapeçarias nas quais as armas dos Castros são preponderantemente representadas. As outras seis tapeçarias representam as vitórias militares e o regresso das tropas a Goa.
A série de dez tapeçarias apresenta-se como uma uma verdadeira reportagem visual cuja importância histórica resulta da extraordinária concordância com as fontes escritas coevas dos acontecimentos, nomeadamente o extenso e detalhado relato escrito pelo próprio D. João de Castro ao rei. Mas mais do que reportagem factual, a narrativa expressa também um outro nível de leitura, de carácter alegórico e filosófico, acerca do significado e justificação da guerra, na linha das formulações teóricas de Maquiavel ou António de Guevara, igualmente subjacentes ao programa de importantes series contemporâneas de tapeçaria como é o caso da série da História de Cipião de Francisco I de França, da série Fructus Belli de Ferrante de Gonzaga ou da Tomada de Túnis do Imperador Carlos V.
Estes aspectos, aliados ao custo superlativo de uma obra tecida a prata e ouro, traduzem a importância desta encomenda da qual , se não conhecemos o encomendador, podemos sem maiores reservas supor ter havido interferência da corte , nomeadamente na pessoa do Infante D. Luís (além da estima que os ligava tinham também sido companheiros de armas na campanha de Túnis estando ambos representados na série de tapeçaria encomenda de Carlos V em celebração dessa vitória). O filho do Vice-Rei, D. Álvaro de Castro cujas iniciativas de glorificação da memória paterna se multiplicaram surge também como uma hipótese em provável concomitância com o Infante. Mas até algum documento surgir há que sublinhar a ausência de prova.
Fabricadas em Bruxelas (o maior centro tapeceiro da época) como o atesta a marca dessa cidade nas dez tapeçarias, apresentam todas a marca da oficina do mestre tapeceiro Bartolomeeus Adriaenz activo em Bruxelas até 1561, confirmando a datação estilística que aponta para um período temporal situado entre a década de 50-60. A análise do estilo permitiu atribuir a realização dos cartões preparatórios sobre os quais foi tecida a série, ao pintor Michel Coxie responsável igualmente por outras notáveis series de tapeçaria.
Até hoje nenhuma prova documental surgiu que explicasse a presença das tapeçarias em Viena ou a razão pela qual não existe registo ou menção da sua entrada em Portugal. Creio, que tal como aconteceu com outras encomendas de tapeçaria que foram abandonadas já a obra feita, a longa duração da tecelagem podendo ocupar vários anos, o avultado valor envolvido, a morte do encomendador (o Infante D. Luís morre em 1555), ou mudança de fortuna financeira (como foi o caso de D. Álvaro de Castro) aponta para hipótese levantada pela autora destas linhas de que a série não chegando a ser levantada pelo encomendador terá sido adquirida pela casa imperial austríaca a quem laços dinásticos ligavam à corte portuguesa. O registo destas tapeçarias num inventário Austríaco de 1880 das obras no museu de Arte e História de Viena provenientes das coleções imperiais apontará nesta direcção.
Quando no final dos anos ’80 com espanto e fascínio dei conta da existência destas tapeçarias nas reservas do referido museu (tinham apenas sido expostas em 1953 em Londres), foi possível, através da Comissão para a Celebração dos Descobrimentos Portugueses e do entusiasmo de Vasco Graça Moura, das diligências do Embaixador Carlos Ary dos Santos em Viena, e da disponibilidade do Director do Kuntshistoriches Museum, trazê-las à superfície, fotografá-las (apenas existiam pequenas fotografias a preto e branco ainda em negativo de vidro), restaurá-las, estudá-las e finalmente expô-las em Viena, no ano de 1992, com pompa e circunstância e com a presença do Presidente da República Portuguesa dr. Mário Soares e o Presidente da República Austríaca. Em 1995 foram parcialmente expostas em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga, publicando-se um catálogo reunindo estudos de vários especialistas e organizando-se um colóquio internacional em torno do tema.
Nota: v.Tapeçarias de D. João de Castro, MNAA, CNPCDP, IPM, Lisboa 1995.
Maria Antónia Gentil Quina
À procura das tapeçarias de D. João de Castro…
Chovia mesmo … molhava quem pelas grandes avenidas de Viena se aventurasse a pé. Entre os quarteirões imponentes e maciços soprava um vento frio que nos fazia enrolar por baixo dos guarda chuvas.
Felizmente, era já ali a porta do Kunst Museum, na ala esquerda da passagem ajardinada. Sair finalmente da chuva! Sacudir-me e salpicar tudo à minha volta, às grandes portas do palácio museu. Entrei.
O contraste foi total: os olhos meramente saídos do impacto das linhas austeras do exterior, por sinal molhadas e ventosas, reagiram com leve sensação de suspensão, para um mundo envolto na sedução do olhar e do sentir que toda aquela arte exprime.
Por sugestão da Maria Antónia, procurávamos, numas salas lá para trás, as tapeçarias de D. João de Castro.
No entanto, ninguém estava muito certo onde estariam as tapeçarias.
Escondidos da chuva lá fora, percorremos várias alas do enorme museu, cheio de coisa lindas. Ficaram imagens de Bruegel, Cranach, Rubens, Arcimboldo, Caravaggio, miniaturas em marfim extraordinárias, o susto da cabeça de Medeia, Sansão e Dalila, e tantos outros já sem nome na memória.
E lá em cima, quase no tecto do Museu, encontrámos os lindos desenhos das Tapeçarias da campanha de Tunis.
Das dez tapeçarias de D. João de Castro só uma estava em exposição mas valeu a pena a procura que nos levou a tantos outros lugares. Felizmente a Maria Antónia sabe, como ninguém, contar-nos a história destas tapeçarias.
Minnie Freudenthal
Novembro, 2014
Galeria de imagens
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário
Daniel Protásio | 2022-10-28
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Interessantíssimo, o artigo sobre as tapeçarias de D. João de Castro, que vou utilizar em livro sobre 1º visconde de Santarém, guarda-tapeçarias de D. João VI. Parabéns!