Estou a quinze segundos de casa dos meus pais, mas a viagem faz-se mais longa. Há uma paragem a meio que eu preferia evitar, mas que não depende da minha vontade. Respiro fundo ao aproximar-me do complexo desportivo, não luto, sei que não vale a pena. O cheiro do cloro entra-me pelas narinas, químico, azul, fecho os olhos em plena rua.
Tenho calor, estou rodeada de espelhos. Ouço este cheiro nas portas dos cacifos que batem, nos risos estridentes das outras crianças, na voz da minha mãe que me diz para parar quieta enquanto me enfia a custo os cabelos dentro de uma touca minúscula de silicone. Vejo o cheiro do cloro nos fatos-de-banho enfiados em corpos miúdos, há de todas as cores, magenta, verde-alface, azul escuro. Sinto este cheiro no sentimento agudo da contrariedade, aquele que para mim caracteriza a minha infância. Tenho oito anos, não quero estar aqui. Tenho oito anos, não sou eu que decido o que quero ou deixo de querer.
Atravesso os chuveiros com a R., estranho os corpos das mulheres adultas que se lavam nuas sem pudor, não quero estar aqui. Se não tivesse a companhia da R., a minha melhor amiga desde que nasci, a vontade de chorar e de barafustar tomaria certamente conta de mim. Mas vejo-a, ao meu lado, sei que também não quer estar aqui, mas temos oito anos, conformamo-nos abraçadas no embalar violento da infância.
A piscina é um palco sem ensaio. Os gritos estalam contra as paredes de azulejo, entramos num mundo azulado e sem ordem, há bóias espalhadas por todo o lado, splashes de água salpicada para a berma, um ou dois professores que me parecem gigantes, atoleimados. Um deles manda-nos entrar para dentro de água, oito piscinas de aquecimento, e é já. Tenho pena dos adultos que não sabem falar connosco, que não entendem que somos meninas pequenas, e que com os seus jeitos abrutalhados assumem que nós lhes devemos gratidão e felicidade por cá estar.
Baixo os óculos do topo da cabeça, sorrio para a R. e ela devolve-me o sorriso. Só nós sabemos o que nos custa ainda não sermos quem viemos ao mundo ser. Mas na nossa cumplicidade há uma promessa de vida nova, um eventual chegar da idade adulta, o fim desta época absurda em que nos obrigam a sair de casa sob a chuva de novembro para nos irmos encharcar numa piscina mal-aquecida e com demasiado cloro.
Mergulho a cabeça debaixo de água, os sons abafam-se por cima de mim, e quando empurro com os pés o muro da piscina e começo a nadar, quase sinto um ligeiro alívio ao sentir de novo o meu corpo esvaziar-se lentamente de todo o seu peso, como uma bóia furada. Saímos do balneário quase uma hora e meia depois, reencontramo-nos com as nossas mães. Elas refilam connosco, porque é que não secámos o cabelo, devemos querer ficar doentes. Mas nós já não as ouvimos. Corremos pelo corredor do centro comercial, para longe daquele purgatório de químicos e silicones, em direção à nossa recompensa prometida. Pomo-nos na fila do balcão da Telepizza, abrimos muito os olhos para escolhermos a nossa fatia. Nunca discordamos, a R. e eu, sabemos que queremos a de fiambre e ananás, mas já só há uma, espero que não a levem antes de chegar a nossa vez. Temos oito anos e não podemos comprar as nossas próprias fatias de pizza, quem o faz são as nossas mães, que sugerem sempre que dividamos uma, como se não fosse de caráter obrigatório essa sugestão.
Sentadas frente a frente, famintas e com uma mãe de cada lado, nenhuma de nós come. Eu não quero acabar a minha mísera metade de fatia antes da R., senão resta-me ficar a vê-la lambuzar-se já depois de eu ter acabado.. Ela pensa o mesmo. Não precisamos de palavras, eu e ela. As mães impacientam-se, comam lá isso para irmos embora. Nós rimos, cúmplices na nossa parvoíce de crianças.
Caminhamos as quatro de volta ao parque de estacionamento. Somos duas cabeças aloiradas, a R. e a mãe dela, e duas morenas, eu e a minha. É terça-feira à noite, eu tenho oito anos e foi dia de natação. Despedimo-nos umas das outras, as mães lá em cima, no piso dos saltos altos, nós as duas cá em baixo. Um dia seremos como elas, e não obrigaremos as nossas filhas a irem à piscina, isso é certo. Queríamos ir juntas para casa, brincar até tarde, mas temos oito anos, cada uma tem a sua mãe, cada mãe tem o seu carro, a sua casa.
Um dia seremos crescidas e poderemos ficar acordadas até tarde, numa casa onde viveremos juntas, os brinquedos de uma serão os brinquedos da outra, e teremos dinheiro para tantas fatias de pizza de ananás que não teremos nunca mais que esperar para as comer.
Até amanhã R., não te esqueças de levar a tua boneca nova amanhã para a escola, eu levo a minha e brincamos juntas.
Engulo em seco, a minha boca sabe a cloro. Observo o complexo desportivo, sinto que os pulmões se me enchem de água. Tenho vinte e quatro anos e já não moro nesta rua. A minha cúmplice de infância já não mora neste bairro. Não chegámos a viver juntas, a comer pizza até tarde, e se um dia mudarmos de ideias e acabarmos por arrastar as nossas filhas contrariadas para dentro de uma piscina destas, não o faremos juntas.
Eu sei que nasci para ser adulta porque sempre fui demasiado frágil para ser criança. As crianças precisam de uma certa insolência que eu nunca tive. Até hoje não me enganei nunca quando dizia de boca cheia que quando fosse grande é que começaria finalmente a viver. Mas confesso que não esperei ter que o fazer sem ela.
O cheiro do cloro da piscina relembra-me dela, e do nosso mundo secreto que acabámos por amar, enquanto esperámos com paciência o momento em que pudéssemos sair dele. Hoje temos mundos separados, contrariedades que já não partilhamos.
Tenho vinte e quatro anos e já não há dias de natação, posso comer todas as fatias de pizza que quiser. Mas às vezes penso que não me importava que me obrigassem de novo a enfiar uma touca verde espinha acima, só para me poder sentar uma vez mais à frente da minha amiga sorridente de óculos roxos, e dividir com ela uma fatia gordurosa de pizza de fiambre e ananás.
Maria Inês Amaro
Março, 2024
Desenhos de Rita Roquette de Vasconcellos (riVta)
Margarida | 2024-03-31
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Que texto lindo, tão real que me comoveu.
Rita Vasconcellos | 2024-03-31
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Querida Inês gostei tanto de fazer os desenhos para o teu belo texto. Li nas tuas palavras um pouco de todos nós. Parabéns. beijinhos
Manuela Carona | 2024-03-31
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Gostei muito, mesmo muito.
Francisco Botelho | 2024-04-01
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Um texto lindo e familiar
Maria Fernandes | 2024-04-24
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Que lindo e bem escrito. E que triste é na sua beleza! Acho que deves continuar a escrever.
Adelino | 2024-04-01
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Excelente! Mais, mais?