De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Tbilisi (4)

Tbilisi, cidade de muitas caras a meio da História

Seguindo o rio a montante, vamos saindo da cidade novecentista e chegando aos bairros periféricos construídos durante o longo, e nem sempre infeliz, período soviético. Entramos num bairro estruturado por boulevards florestados e por pequenos parques, por entre os quais se elevam edifícios de cerca de sete andares de altura de uma arquitetura grosseiramente moderna; paralelepípedos de cimento armado concebidos para fomentar a felicidade familiar comunista. Com o tempo, e sobretudo depois de passada a ditadura, os habitantes destas casas quiseram fazê-las maiores e meter dentro delas mais e mais família. Não é esse, afinal, o destino das famílias, que, se não desaparecem, crescem?
O mesmo sistema que os habitantes de Tbilisi usavam já nas velhas mansões do centro romântico da cidade é agora aqui reproduzido mas usando novos materiais e nova coragem. Enquanto nos palácios burgueses, os exosqueletos são de madeira; aqui todo o edifício é rodeado por um esqueleto metálico de enormes barras de ferro industrial. Só que nem todas as famílias crescem ao mesmo ritmo; nem todas têm o dinheiro necessário para construir mais um quarto que prolonga o quarto do edifício inicial de cimento armado. Há uns que só querem uma varanda; outros que querem um novo quarto inteiro; outros ainda que, para além do quarto extra, também querem mais uma varanda para pendurar roupa; etc. Assim, por cima de um quarto novo há um vazio de quem não quis ou não pode construir. Quem foram os engenheiros geniais que desenharam tais estruturas improváveis? Como se mantêm aquelas coisas em pé? Quem suporta quem: o cimento armado ou o exosqueleto de ferro industrial? Que labirinto se terá construído lá pelos interiores destes edifícios que se vão tornando mais e mais escuros, consoante mais e mais se vai construindo à volta da estrutura inicial? E se o design inicial do edifício era puramente regular—todos os prédios iguais, todas as escadas iguais, todas as janelas e varandas iguais, todas as habitações iguais, todas as escadas na mesma direção, etc.—agora nada é previsível, nada é igual a si mesmo.

Nas margens destes parques, os esqueletos dos velhos carros soviéticos agora abandonados misturam-se com carros acabados de chegar: Mercedes, BMWs e Audis, muitas vezes versões de luxo. Sim, porque a Geórgia é o ponto final de todo um circuito de vida automóvel, mais ou menos ilegal, que começa nas garagens pomposas dos alemães mais ricos e, de mão em mão, vai parar às bordas do Grande Cáucaso.
Por entre as árvores, montam-se estendais que tanto secam roupa de família como exibem carpetes sintéticas para serem vendidas a bom preço a quem passa. Ao lado, pequenos ateliers de costura vendem, fazem e reconstroem roupas de todos os estilos. Em mais um desses se perdem as nossas senhoras, fascinadas pela inventividade e, por vezes, pelo bom gosto da costureira que tenta assim ganhar mais alguma coisa extra.

Depois, mais uma vez, sentimos o cheirinho sacramental: pão! Dirigimo-nos inevitavelmente à fonte do cheiro. Numa pequena loja de esquina, construída clandestinamente por baixo de umas tantas e velhas casuarinas, encontramos um padeiro a fazer pão num daqueles fornos orientais em forma de poço. Ele pega num pedaço de massa, amassa-a e depois, usando uma espécie de patela de madeira mete o braço dentro do forno quente e atira a massa contra a parede. Logo de seguida, vai tirando os pães, agora já cosidos e enchidos, que ele tinha atirado contra a parede uns minutos antes. Compramos um desses maravilhosos triunfos da arte gastronómica; um pão achatado e estaladiço, com um interior fofo e que exala um cheiro maravilhoso no qual o levedo se mistura com a manteiga da massa. Uma delícia que, se no princípio não pode ser comida por estar quente demais, logo começa a tornar-se irresistível. Mais meia hora, porém, o pão agora frio continua a ser bom mas perdeu já muito do seu charme. Por isso, penso eu, a padaria tem que estar ali onde está, entre casas, por baixo de mais uma dessas estruturas improváveis e indescritíveis cujo regularidade do interior soviético é agora totalmente insondável quando vista por fora.
Ainda com o pão na mão, vemos uma série de enormes cabeças de pedra alinhadas ao lado da estrada, no meio do que parece ser um lote abandonado, onde as plantas selvagens se misturam com o que devem ter sidos espécimes de jardim. A princípio não percebemos sequer que se trata da entrada em tempos grandiosa para a Cinecitá geórgia do período soviético. No interior do bairro, vamos dar ao que resta de uma enorme série de estúdios de cinema, agora reutilizada para todo o género de atividades semi-industriais, semi-legais. Por entre os restos de uma carroça de ciganos de filme, pilares e estátuas neo-gregas, carros abandonados de época, estrelas douradas gigantes, há toda uma circulação de novas atividades económicas. No meio deste palimpsesto económico, basta escavar um pouco para logo discernir as marcas do cinema soviético—que, neste local, produziu algumas glórias importantes, que mais tarde conseguimos até ver. O relógio dos estúdios, agora parado; as zonas de escritório ainda com sinais da sua grandeza inicial, agora subdivididas em barracas; os enormes portões de entrada celebrando a arte cinematográfica—tudo isso nos deu a sensação de, mais uma vez, termos entrado sem querer na barriga da história.

Por fim, um dos lugares mais estranhos, belos e misteriosos. À saída da cidade do cinema, olhei para cima e, no morro de uma montanha, vi um edifício enorme, preto, já fora da cidade. Levei o empregado do restaurante à janela e perguntei: que é aquilo? Ah, respondeu, é uma espécie de parque. Parque? Não tinha nada aspeto disso. Metemo-nos no táxi e, depois de muitas explicações, lá conseguimos chegar. É o pai de todos os monumentos. Uma floresta de mais de uma dezena de grandes pilares de seção quadrada de cerca de quinze metros de altura integralmente cobertos de enormes placas de bronze esculpido.
O todo forma uma espécie de labirinto em cima da crista da colina que separa a cidade do principal reservatório de água—um vasto lago azul turquesa que se expande para nordeste. A vista ampla sobre os bairros periféricos do período soviético, agora em diversos estados de decadência, espalha-se por todo o vale central no meio do qual a Tbilisi antiga mal se vê, por estar escondida num recorte fundo do rio. O vento é feroz, mesmo em dias de sol, chegando quase a fazer-nos cair.
Poucos são os que lá chegam. Da primeira vez que lá fomos, estava vazio. Só nós e o taxista em baixo da escadaria que leva ao patamar das colunas. Não chegámos a entender se o homem estava impaciente ou um pouco preocupado com a nossa segurança. Da outra vez, havia um casal de japoneses com ar de artista, empenhados ativamente em fotografar a coisa. A porta de metal pesada e esculpida da pequena capela anichada por trás das colunas, está sempre fechada. A cruz de Santa Nino por toda a parte. Trata-se de um monumento feito pelos russos à glória da história do povo geórgio. Uma espécie de oximóron em bronze, onde a religiosidade e a espiritualidade cristã dos geórgios é celebrada por ateus comunistas. A verdade é que nunca conseguimos apurar com certeza duas coisas: porque ninguém lá ia; e porque ninguém queria falar sobre o assunto, fingindo muitos até que não sabiam que aquilo existia. Da próxima vez que lá quis ir com os meus amigos fui obrigado a mudar de táxi duas vezes, porque eles fingiam que não sabiam que aquilo existia e queriam levar-nos a outros sítios. Pensando melhor, aquele desproporcionado e caríssimo monumento não celebra realmente nada, até porque a placa de comemoração era a única que visivelmente tinha sido substituída … digamos que tinha havido uma tentativa de refundação! Contudo, o que aquilo mais me fazia lembrar eram as minúsculas igrejas em ruínas da Tushetia. No ponto mais alto do Cáucaso geórgio, onde a religião pagã original continua a ser predominante, os russos decidiram captar a alma do povo construindo … igrejas! Como ninguém os levou a sério, só uma delas ainda está em pé: a capela da aldeia onde nasceu um dos clérigos mais importantes de Tbilisi, que mantém a capela a título próprio largamente contra a vontade dos vizinhos. Parece que ainda há na Geórgia sítios onde a Santa Nino não chegou, pelo menos na parte da teologia, porque na parte do culto à chacha não há dúvida que chegou e bem, julgando pelos brindes infinitos dos nossos alegres jantares de montanha.

Galeria de Imagens

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Antropólogo social, Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Foi Presidente da Associação Europeia de Antropólogos Sociais entre 2003 e 2005. Entre muitas outras obras é autor de Between China and Europe: Person, Culture and Emotion in Macao. Continuum/Berg, Nova Iorque, 2002 e co-editor com Frances Pine de On the Margins of Religion, Berghahn, Oxford, 2007.

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Últimos comentários
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    Adorei ler, e fotografias óptimas, parabéns

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    Muitíssimo interessante …texto excelente. Parabéns