De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Tbilisi (2)

Cidade de muitas caras a meio da História (continuação)

No dia seguinte, queremos passar o rio para norte, mas caímos por acaso na feira da ladra de Tbilisi. A mistura de tempos e a confusão de regimes económicos encanta-nos imediatamente. Uma série de carros estacionados vão servindo de bancada e armazém para todo o género de bugigangas: algumas encantadoras; outras simplesmente evocativas de vários dos passados que por ali passaram; outras, finalmente, nada mais que restos dispersos de vidas domésticas acabadas. Vindas das montanhas a norte, as peças coloridas de feltro de lã, esvoaçam penduradas em estendais entre as árvores. Pelo chão, entre discos velhos e pratos desgarrados, estão amontoados todo o género de instrumentos, desde foices a navalhas, passando por cornetas, guitarras partidas e espadas de gala. Retratos de parentes já mortos há tempo demais; carpetes mais ou menos artesanais; pinturas de todos os estilos; bonés e medalhas soviéticas em larga quantidade; roupas variegadas…

Depois passeamos pelas encantadoras ruas da margem norte do rio. Entramos e saímos de pequenos palácios burgueses, cujas fachadas são decorados com balcões e estuques luxuosos, formando no interior pátios românticos. No fundo desses pátios, os mercadores levantinos do século dezanove tinham os seus barracões por onde passava todo o género de mercadoria. O período soviético dividiu essas casas, subdividiu-as, expandiu-as para o pátio por meio de barracões de madeira e chapa de zinco, voltou-as a subdividir… e por aí fora. Por trás, para que os diversos apartamentos fossem acessíveis, construíram-se escadas e patamares de madeira, frequentemente decorados com esmero, com goteiras em zinco artisticamente recortado. Hoje, essas escadas adicionais formam exosqueletos dos edifícios que, apesar de terem sido inicialmente muito mais sólidos, estão agora bem necessitados do apoio que as escadas de madeira lhes fornecem.
De repente, um som angélico: olhamos para dentro de uma janela iluminada por detrás de uma escada de caracol de madeira que, de tão podre, já não seria capaz de suportar o peso de um humano e, lá dentro, desenhada numa janela iluminada, vemos uma jovem debruçada sobre uma partitura tocando com maestria uma enorme harpa de concerto. Pouco depois alguém a chama. Pára, levanta-se e desaparece; deixando como único sinal de que tinha existido a partitura e o seu casacão escuro deitado sobre um catre ao fundo do quarto.
Logo voltamos a sair para uma rua debruada por árvores antigas, restos do que terá sido um bairro de mercadores ricos, cada um com um entreposto no seu pátio, acessível através de um túnel fundo que passa por dentro da fachada frequentemente espampanante do edifício. Vamos subindo a encosta e, a certa altura, as casas são já mais pobres e mostram bem marcas de uma presença otomana, com gelosias e varandas cobertas. Logo ali está a loja de uma costureira que, usando materiais coloridos de todo o tipo de proveniência, produz roupas femininas. As nossas companheiras entusiasmam-se: sai a máquina fotográfica, começam a experimentar-se roupas, discutem-se preços. O entusiasmo delas é um pouco mais intenso que o que eu consigo mobilizar. Saio para a rua e fico a olhar os transeuntes que passam.
Do outro lado da rua, emerge de uma porta engalanada um indivíduo que vem direto a mim. Fala um rudimento de inglês. Assinala que me tinha visto da janela do primeiro andar. Da mesma idade que eu, e também com uma barba grisalha, tem uma postura de pessoa importante. De hesitação em hesitação vamo-nos entendendo. Ele queria explicar que o prédio que eu apreciava era da sua família; que ele é um arménio de Tbilisi; que havia muitos aqui antes dos soviéticos; que eram muito ricos e que os seus antepassados tinham construído esta casa, onde agora vive no primeiro andar, no que era antes um dos salões principais e cujas varandas não inspiram hoje grande segurança, dado o estado avançado da ferrugem do lindo ferro forjado que as suporta sobre a fachada verde-cinzento do prédio. Mais ainda, por forma a confirmar sem dúvida alguma que ele é de sangue real, passa a debitar uma série de nomes do que presumo serem reis e generais, seus antepassados, que eu não sei sequer reconhecer—logo se seguem longas explicações em geórgio … Depois de tentar comunicar-lhe por gestos e grunhidos a apreciação que eu próprio tenho pelo povo arménio e o respeito que tenho pelos pergaminhos antigos da sua família, lá acabo por ser salvo pelas nossas companheiras de uma conversa que não ia muito para além daquilo.

Numa outra tarde, saímos para a rua com a ideia de fotografar fachadas, porque a cidade antiga está cheia de casas lindíssimas, cujo envelhecimento só lhes aumenta o charme e lhes dá um certo mistério. Mas começa a chover. Passamos por um portal do que parece ser um convento. Lá dentro há um pequeno pátio com um alpendre de madeira rodeado de plantas de jardim em vasos e canteiros. Em desespero, sentamo-nos no banco de jardim debaixo do alpendre à espera que a chuva passe. A chuva cai cada vez mais forte e ficamos ali a olhar à nossa volta surpreendidos. Lentamente, vamos sendo penetrados pelo mistério do espaço e pelos ecos de espiritualidade que emana. Vamos compreendendo que se trata de uma espécie de convento feminino; que o alpendre encostado à parede no lado oposto do edifício, protege um lindíssimo e antigo mural dedicado à dormição da Virgem. Por entre as plantas que cobrem as paredes, começamos a notar pequenos altares e ícones. Um sino monástico está pendurado do corrimão das escadas de entrada. Lá dentro da casa, os painéis de vidro brilham de repente: alguém deve estar a ler e a escuridão causada pelo mau tempo obrigou-a a acender a luz e revelar os antigos ícones multicoloridos espalhados pelas paredes do outro lado das janelas. Mais tarde, já a chuva está a amainar, volta a luz a apagar-se. Pouco depois, quando já estamos cá fora a fotografar os lindos pilares de madeira esculpida que suportam o portão, entra um religioso que nos cumprimenta respeitosa mas distantemente.
Prosseguimos. Pouco depois entramos numa igreja. O interior está sobrelotado de frescos, ícones e estátuas; as paredes pintadas de um azul claro creme, quase esverdeado, que dá uma enorme frescura ao espaço. Um grupo de pessoas canta maravilhosamente um responsal, interrompido aqui e ali pela voz do celebrante. Sentados nos bancos de madeira deixamo-nos penetrar pelo som das campainhas, a voz cava e segura do celebrante, pelas vozes do coro, pelas velas acesas, pelo bulício alegre mas respeitador dos fiéis. Não foi a única vez que ficámos encantados pelas igrejas de Tbilisi, pelos crentes que por lá circulam, pelos sinos, pelos cânticos, pelos ícones.

Na verdade, esta é uma cidade musical, onde vive um povo musical, cuja alma recolhe e depura tudo o que há de melhor na música dos quatros ventos que ali se tocam: o russo a norte, o iraniano a sul, o arménio a oeste, o Pamir a leste. Vamos encontrando música em toda a parte. A certa altura, passando por um túnel subterrâneo por baixo de uma das ruas principais, somos alertados pelo canto feminino que emerge de uma das pequenas lojas que ladeiam o túnel. Ficamos à porta a olhar, porque só há espaço lá dentro para as cantoras. Em torno ao balcão de vidro de uma loja de itens religiosos e papelaria, estão quatro jovens mulheres, uma delas sentada num simples banco de madeira com um mandolim no regalo, cantando uma das peças polifónicas do cânone religioso tradicional. Aquele espaço normalmente sórdido, de repente, muda totalmente de aspeto. Por informal que seja a música que fazem, elas têm vozes treinadas e combinam-se polifonicamente com maestria. Quando terminam, por entre fotografias, risos e agradecimentos, continuamos o passeio, cada um de nós mais encantado que o outro.
Nessa noite, decidimos visitar um dos restaurantes clássicos da cidade: a Casa dos Khinkali—a versão geórgia desse prato asiático por excelência a que os polacos chamam pierogi, os chineses shuijiao, e os ingleses de Hong Kong dumplings. Depois de comermos várias travessas acompanhadas de muita salada e excelente vinho tinto, vemos que começou a dança em torno a um grupo de roqueiros ao estilo geórgio, que toca uma mistura de tudo o que é música de dança vinda de todo o mundo, mas sempre com um toque local. De repente, um homem mais sénior, de farto bigode, destaca-se de um grupo de dançantes e vem em direção a mim, convidando-me a dançar. Fico perplexo! Devo confessar que foi a primeira vez na vida que fui convidado a dançar. Mas olhei à minha volta e vi que, ali, dançar era sobretudo coisa de homens e lá fui eu ao baile! Não sei se me saí bem ou mal, mas o gesto dele foi apreciado. Lá levantei os meus braços e mexi os meus pés como qualquer dos outros que por ali estavam e, pouco depois, o resto do meu grupo juntou-se a mim. Passámos uma encantadora noite de festa.

Já um pouco turvos e bem dançados, saímos do restaurante e a nossa intenção era ir para a rua, mas não foi isso que nos aconteceu. Encontrámo-nos sem querer num labirinto de corredores e passadeiras ao estilo Black Rain, que desciam pela terra a dentro, pintadas com todo o género de grafitis já meio corroídos pelo tempo. Ratos escapuliam-se pelas paredes húmidas ao fundo. Perdidos, com pouca iluminação e nenhuma indicação, optamos por seguir o som de música. Num pátio interior subterrâneo damos com um bar dançante. Mas, claramente, a atmosfera aqui é bem diferente da alegria familiar do restaurante dos khinkali. Não fazia decididamente o nosso género. Já meio preocupados, acabámos por encontrar a saída. Respirávamos ainda fundo quando, ao atravessar uma rua debaixo de uma ponte, demos de frente com um patamar debruçado sobre o rio, onde debaixo de umas árvores antigas estavam pousadas mesas de café cheias de gente pacata. Mais uma vez ouvia-se música. Agora era jazz de melhor qualidade e o bar, montado num chalé orientalizante do período romântico, produzia uma atmosfera alternativa, estilo anos setenta, muito convidativa. Entrámos para apreciar a decoração e ver o estilo, mas a noite ia já longa e afastámo-nos com pena de não ter chegado lá um pouco mais cedo.

João de Pina Cabral
Março, 2019

Galeria de Imagens

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

Partilhar
Escrito por

Antropólogo social, Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Foi Presidente da Associação Europeia de Antropólogos Sociais entre 2003 e 2005. Entre muitas outras obras é autor de Between China and Europe: Person, Culture and Emotion in Macao. Continuum/Berg, Nova Iorque, 2002 e co-editor com Frances Pine de On the Margins of Religion, Berghahn, Oxford, 2007.

COMENTAR

Sem comentários