Porque não evoluía como os outros 6 irmãos, agarrei na Luizinha e levei-a a Londres. Tinha 11 meses. Feito o diagnóstico de atraso global severo, disseram-me que se ela vivesse em Inglaterra aprenderia a ler, a escrever e teria uma profissão – mas lá em Portugal não tem hipóteses.
E não teve.
Hoje, a Luísa tem 33 anos. Gosta de dançar, da família, de ouvir música, de rir, de andar de combóio, de se sentir útil… de ser considerada pessoa. Mas não aprendeu a ler nem tem uma profissão. E continua sem lugar na sociedade.
Eduquei 7 filhos, dei aulas, tornei-me escritora, lutei, criei projetos, sem nunca perder de vista a ameaça de uma filha “não rentável” que me obrigou a repensar o duro ofício de ser-se humano.
É por isso que aprendi a pensar de outra maneira.
Uma criança que nasça fora da norma (anormal como era chamada), não tem modelos orientadores da sua socialização – neles se quebrou a “fôrma” que molda os indivíduos desde meninos. E os pais, perdidos, sem qualquer apoio, interrogam-se sobre o que fazer, como fazer. As intervenções externas são terapêuticas, pontuais, não havendo preocupações holísticas relativas àquele serzinho indefeso e frágil que vai crescer e viver à margem da sociedade. Até há pouco, um deficiente não tinha existência plena. Nunca.
Helen Keller foi uma princesinha caída de um planeta de Saint Exupery.
Nos anos 60, a Europa inicia um processo lento de reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência, dando-lhes suporte institucionalizado, mais ou menos correcto mas sempre em gueto.
A partir da década de 90 desenha-se uma nova abordagem da deficiência que passa a proceder da relação pessoa/sociedade: a deficiência de alguém com limitações intelectuais graves resulta de uma insuficiência social que não disponibiliza os apoios necessários a uma plena integração na sociedade. Surge o conceito de INCLUSÃO.
Este modelo representa uma mudança radical na conceptualização das pessoas com incapacidades motoras, sensoriais, intelectuais (cujo número infelizmente vai aumentando). A reabilitação não decorre já de um paradigma médico mas interpsicossocial. Que implica revoluções civilizacionais, alterações de comportamentos, novas atitudes de carácter sociológico e singular. E nunca meras decisões teóricas ou planos de jure.
Os países ditos evoluídos têm-se esforçado por desenvolver processos e estruturas que lentamente vão criando as condições para esta complexa inclusão.
Em dezembro de 2008, Portugal ratificou a Convenção da ONU sobre Inclusão. E legislou em conformidade, na convicção de que o Estado Português iria executar com facilidade os ditames da Convenção ratificada
como se evoluiu nestes últimos anos, tantas instituições, tantas rampas, tantos lugares nos estacionamentos!
Criaram-se expectativas, altas expectativas
o teu filho tem à disposição terapias múltiplas (quase todas com alto custo para as famílias) e será um cidadão de pleno direito.
Mas a legislação é difícil de pôr em prática e a INCLUSÃO, invocada nos congressos de especialidade, está ainda longe de se tornar realidade.
Criou-se por decreto-lei a escola inclusiva. Foram fechadas quase todas as escolas de ensino especial e integraram-se as crianças no ensino regular. Com poucas estruturas sérias de apoio, sem preparar os alunos ditos normais e suas famílias, nem os outros professores. Se, por um lado, a integração escolar destas crianças representa um passo gigante na sua socialização, por outro lado, pode tornar-se em muitos casos um crime de lesão humana.
Ensinar qualquer criança com deficiência implica sair da nossa esfera, entrar na esfera do outro e procurar conhecê-lo
pensar de outra maneira.
Julgo que nestes 3 anos aprendi mais sobre aprendizagens que em toda a minha vida adulta. Aprendi com outros que se foram tornando meus pares, aprendi com outros que não querem ser pares de ninguém, aprendi com acções e reacções e segredos guardados e vergonhas arrepiadas… E fraudes.
Há que desconstruir os modelos, analisar os processos de aprendizagem à lupa para compreender onde é que aquele menino ou menina esbarra. Avaliar o stadium de desenvolvimento e criar, em conjunto com uma equipa multidisciplinar, o PEI (projecto educativo individual). São procedimentos muito sofisticados, caros e que implicam bastos recursos humanos e materiais que não temos: um empreendimento que abala hábitos e preconceitos, poderes instituídos, medos ancestrais.
é muito melhor usar quando não se percebe.
Como me dizia a mãe de uma criança deficiente profunda, quase vegetal, olhando para a minha filha
que sorte, Luísa, o que você pode fazer com ela!
É tudo uma questão de atitude.
E asseguro-vos que se aprende muito com as limitações, as incapacidades, quando elas surgem nas nossas vidas ou, se felizmente não nos couberam, quando se tornam próximas de nós pela sintonia com os outros.
Luísa Beltrão foi fundadora e é presidente da Associação Pais-em-Rede , Organização Não Governamental para Pessoas com Deficiência (ONGPD) que tem como objectivo promover a inclusão social das pessoas com deficiência e suas famílias.
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PatriciA b. | 2017-07-11
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Que contributo maravilhoso, luisa! Sinto orgulho em ter sido sua aluna. ObrIgada