Finais do século XVII, numa cidadezinha da Nova Inglaterra, reunião cívica dos 300 cidadãos proeminentes lá do burgo, na Casa Municipal.
Em sistema de votação aberta, decide-se entre outros assuntos, conceder autorização para abertura de uma padaria, reparação da estrada que leva ao cemitério, melhoramentos no sistema de esgotos, eleição dum tesoureiro municipal, e execução duma surtida militar punitiva contra os Pequot, responsáveis por um ataque a uma quinta no interior onde morreram um cidadão e dois índios.
Também foi aprovado o banimento duma escandalosa adúltera para uma vilória próxima, a proibição de vender propriedades a católicos e judeus, a nomeação da nova professora da escolinha local, entre outros assuntos.
Estes 300 cidadãos são todos proprietários de terras com uma área mínima estipulada. Todos e cada um deles têm um conhecimento profundo de todos os assuntos votados. Entre eles a Democracia Politico-Económica é total.
Mas dum ponto de vista mais geral, ficamos por aqui. Excluídos de qualquer intervenção cívica estão as mulheres, jovens, cidadãos sem posse de terras, serventes e rendeiros, servidores contratuais (indentured servants), escravos, índios, católicos, etc. Mas pelo menos os aspectos económicos e políticos são extensivamente discutidos pelos 300 e as medidas são aplicadas com a aprovação de todos os presentes.
E para o bem comum, os excluídos não votam. Se o fizessem, seria a banalização do acto de votar, assuntos frívolos viriam à baila, birras e quezílias empatando o processo cívico. Os 300 são fundamentais, necessários e suficientes.



E a Democracia Cultural? Inexistente. Normas de conduta puritanas são implementadas brutalmente, e será uma sorte que não haja uma caça às bruxas todos os anos, com perseguições e ameaças, linchamentos e castigos corporais públicos.
O contraste com aquilo a que chamamos Democracia hoje em dia, é total. Nunca, semânticamente, uma palavra mudou tanto. Hoje o conceito refere-se exclusivamente à Democracia Cultural, para escamotear a completa desaparição da Democracia Político/Económica. O Poder real é subterrâneo e tentacular, e o espectáculo da política e dos políticos é uma cortina de fumo, que nem precisa de ser particularmente opaca para cumprir a função que lhe cabe: entreter as massas ignaras a que chamam “O Público”. Um público estimulado a consumir modas e ideias dissociadas da realidade e de qualquer função social. Uma sociedade atomizada em que o consumidor é a partícula elementar da economia.
Proliferam os mais absurdos movimentos, e a populaça é seduzida a aderir culturalmente ao que quer que seja, a identidade individual exige-o. No Texas há um movimento canibalístico onde comem placentas humanas depois do parto. Os transgenders são considerados psiquiátrica e psicologicamente normais, e em certos casos o Medicare paga a cirurgia necessária para “mudar de sexo”. O governo nos EUA criou, nos anos 90, o Office of Alternative Medicine que depois de muitas mudanças de nome acabou como National Center for Complimentary and Integrative Health. Fazendo parte do prestigioso NIH (National Health Institutes) é administrado e financiado pelo governo e dedica-se entre outras coisas ao estudo da Homeopatia e à Cura Espiritual à Distância.



Para corrigir injustiças imaginárias fomentam-se guerrilhas, em que um dos participantes é apresentado como vítima do outro. Mulher contra Homem, Preto contra Branco, Homo contra Heterosexual, Muçulmano contra Cristão, etc. Mas apenas a um dos lados é dado o direito de segregar, insultar e achincalhar o oponente. É o “coitadinho” a quebrar as correntes opressivas.
A tolerância para quem pensa e age diferente de nós é implementada com zelo inquisitorial. Uma promiscuidade de valores e princípios éticos, morais, e estéticos, garante que, com a passagem do tempo, mais cedo ou mais tarde cada pessoa esteja destinada a ser escandalizada e insultada. Nada melhor para promover a mansidão e confusão do cidadão.
As regras e valores de cada um, deixaram de condicionar a palavra e a acção. Dada a inutilidade da censura, qualquer censura é proscrita. E a fronteira entre Real e Fantasia desaparece. Como dizia o Baudrillard “apresentam-nos a Disneylândia como Fantasia para nos levarem a crer que o mundo cá fora é Real”.
A democracia politico-económica contudo, está completamente ausente. Uma populaça iliterata e inumérica, incapaz de compreender o poder económico financeiro e científico dominante, entrega-se, na busca de explicações, aos meios de comunicação social. Aí aprendem o que lhes põem à frente, e como pensar sobre tudo o que vêem. Paínço cultural para pássaros engaiolados, incapazes de verem para lá das grades. Impotentes na política internacional, aturam guerras e conflitos cujas causas lhes escapam completamente. Inconscientes das suas limitações, no entanto votam… com resultados inconsequentes no que diz respeito às causas profundas. É a pós-verdade à solta. É tudo um espectáculo.
E como show, nada bate o Trump.
José Luís Vaz Carneiro
Tucson, Agosto 2018

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário.
Exposição retrospectiva da obra do ceramista Hsu Tzu-Kuey no Museum of Fine Arts de Kaohsiung, em Taiwan.
Estas peças são bastante grandes, substancialmente mais altas do que nós e o efeito, na sala onde estão expostas, é espectacular! MR