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O meu gato

“Se eu morrer antes do meu gato, quero que espalhem um pouco das minhas cinzas na sua ração para que eu continue a viver dentro dele” Drew Barrymore

Gato ou gata, tanto faz, se ele tem dias femininos, ela é Maria-rapaz, às vezes romana vestal, outras, imperatriz, amante de deuses, de porte búdico, nem sempre púdico,  original. Reis furtivos, os meus gatos, serenos tigres espiando a borboleta, prudentes senhores da serenidade, amantes do abat-jour, parecem saber decifrar qualquer enigma que se afigure. Se raramente nos mostram o quanto nos amam é porque conhecem a nossa ingratidão em face do verdadeiro amor.

Trocamos olhares cúmplices, fazendo o nosso caminho, em silêncio, o mesmo do alto das montanhas, das ilhas remotas, da profundeza dos vales. Lenta e meticulosamente nos vamos transformando como leitos de rios e oceanos, silentes mas despertos e atentos, não mais dormindo acordados, vigilantes a dormir. Sem juízos, apenas testemunhando, vendo onde os egos se apegam e se iluminam os seres. A vossa atitude vem recordar-nos que nem tudo o que existe é para nos servir. Uma via para termos presente a grandeza da humildade.

Com alegria e paixão me recebes cada dia, meu gato, e me dás ensinamento –  perigoso viver com pressa, a beleza requer tempo, o cuidar precisa de vagar. E eu cuido-te com desvelo.  O tempo que te dedico é tempo aprendido para de mim cuidar, depois de escovar o teu pelo.

Meu gato, belo adormecido, amor tigrado, filósofo, pensador indolente, mestre da delicadeza, a qualquer hora aninhado no meu colo, sensual, enamorado, por que me olhas tão fixamente? És belo quando exibes a barriga, flor branca, presente trocado por uma carícia. Belo o teu ar estranho, enigmático, o olhar perscrutador, verde cintilante, mel e metal, âmbar, água marinha, ausente de malícia. Belo esse meneio indiferente de quem não se liga a ninguém, o teu miado terno, discreto, a tua delicada misantropia. Juntas, devolvem-nos a alegria, a tua solitude e a minha.

Tudo em ti me inspira amor, fascínio, confiança, em ti me revejo criança quando te observo a explorar e a fazer cabriolices. Não brincas para fingir alegria, nem entras num mar de dúvidas, esse lugar onde perdemos o pé e nos podemos afogar. Tanto me tens ensinado. Invejo-te a plasticidade, o poder de adaptação. Ambos sabemos que o céu não nos estenderá a mão se, de rastos, não nos pudermos erguer para o tocar. Contigo, aprendi também a arranhar.

Mesmo que ache o seu bichano, parecido com este retrato, eu sinto que é especial, e é só meu, o meu gato.

Ana Zanatti
Novembro, 2024

Galeria de Imagens

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Estudou no Liceu Pedro Nunes, Faculdade de Letras, Conservatório Nacional (curso de teatro). Desde 1968 trabalha em teatro, televisão, cinema, rádio. Em 2003 começou a publicar romances e contos infantis. Continua a escrever.

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Últimos comentários
  • Tão bonito Ana,tão inteligente e sensível.
    O gato é um animal muito especial,nunca se sabe se está cá se algures e nas poucas vezes que os nossos olhares se cruzam dá-nos um mundo de paz e de mistério.
    Beijos.

    • Obrigada, querido Luís, pela tua leitura, ela também, sensível e inteligente, A escrita precisa de bons leitores , e tu és um leitor especial, como os gatos:)

      um beijo
      Ana