Não Será um Poema
não será um poema
uma espécie de cadavre exquis,
talvez, brincando com Henri Michaux
o que sempre me desafia e inspira.
redescubro na estante cheia de pó
a edição de JOURS DE SILENCE
da Fata Morgana, de 1978, tiragem
pequena, quase como as do Vítor Silva Tavares,
papel Vergé beige, que eu comprei em Paris em 1980,
quem sabe a década mais feliz de um tempo em que
a criação surgia fácil, e sem me deixar adivinhar
que logo a seguir tudo seria tão difícil, impossível até.
Avancemos então: Jours de Silence, Dias de Silêncio,
em que o silêncio era um mar, uma água espalhada
pela areia, pela vida, e a onda que nos enrolava nos deixava
bem longe, no ritmo que batia enchendo o universo, como
se em cada estrela o nosso coração de gente viva pulsasse
a dar sinal de si. Aqui estamos, aqui ficaremos à espera
dos segredos finais, os prometidos. Como dizer melhor?
Em absoluto silêncio. Eis-me companheira dos princípios Obscuros, os
primordiais do início dos tempos, ritmos, apenas ritmos, enquanto leio,
ou adormeço, num desejado, mas difícil descanso.
Descubro os corações ao acordar no meio de objectos familiares
de que não me lembrava. Também esses objectos estão cheios de pó.
Deixei de os limpar já não sei quando, eram coisas pequenas, fáceis de esquecer,
embora se eu tivesse dado atenção ainda pulssassem.
As coisas têm a sua vida própria, corações que ainda batem,
escondidos em manchas de negra escuridão. Há um azul para lá do negro,
o traço que divide, falo da língua, a do silêncio em que se afundou,
com as palavras perdidas em busca de sentido. Mas como, sob uma onda
tão poderosa, horizontal, que aplana tudo à passagem, um lago que se
transforma num outro devir há tanto tempo e tanto silêncio procurado.
Nada se vê, nada se ouve, imersão total em margens inexistentes num
tempo fragmentado em que se tornou impossível sentir o desejo de ser.
Yvette K. Centeno
Julho 2022
Inédito
Foto de Manuel Rosário