E a aventura vai começar…
Vamos então sair da zona de conforto.
Fizemos o briefing e o maior desafio é:
Comer carne todos os dias às três refeições. Perguntei se tinham arroz.. parece que sim mas o guia não me pareceu convincente… nada cresce neste país. No Inverno as temperaturas andam abaixo de 40 graus negativos. Pelo sim pelo não enchi a minha mochila de nuts, bananas, trouxe o meu pão e as minhas bolachas.
Segundo desafio: as casas de banho. É muito simples: não há. Tivemos uma lição durante a qual que nos ensinaram como tomar banho de caneco e como usar o campo para o resto..
Terceiro desafio: fazer as deslocações montadas em cavalos semi-selvagens. Essa parte eu gosto. E na dúvida desmontem disse ele.
Quarto desafio: não há electricidade. Eventualmente os nómadas terão placas solares para carregarem os seus telemóveis e para a televisão. Mas só funciona se o céu estiver descoberto. E talvez nos deixem carregar os telemóveis. Quanto à internet… não resisti. Fui comprar um simcard.
Bjs grandes a todos. Vou ver como sobrevivo.


A cidade
A cidade é muito feia. Muito muito feia. Esburacada, despintada, um prédio alto aqui e ali. No meio o ferro velho, lojas com linóleo remendado, casas com janelas partidas. Um misto de regime comunista com pagodes chineses. Cheira a pum. Nos elevadores, no carro que nos trouxe para o hotel, na rua. Numa cidade tão fria, os banhos não devem abundar.
Estranhamente ouve-se o silêncio. Não há música, não há pregões. Só carros e silêncio. E estamos no centro. Dobrarmos a esquina e eis que estamos na enorme Praça do enorme Genghis Khan. Todos os mongóis lá devem ir pelo menos uma vez. Aí sim. Há vida. Noivas e noivos, novos e velhos, novas e velhas. De smoking, de trajes tradicionais, de lantejoulas, rendas, diademas, chapéus. Registam o momento para a posteridade, cantam, riem e depois vão-se embora.
Andámos lá pelo meio, trouxe o cheiro a pum para casa…

As crianças
A taxa de natalidade é de 3,6 por casal e o governo zela para que esta se mantenha ou cresça. Por cada criança a partir da terceira que um casal tenha, o governo paga. Vêem-se crianças por todo o lado. Acarinhadas, abraçadas, sorridentes. Pais, avós e bisavós envolvem-nas num abraço constante. As crianças são o futuro da Mongólia diz-nos, orgulhosa, a guia.
Muitas vezes as portas dos edifícios são guardadas por dois leões. Dois não. Três. A fêmea tem sempre uma cria consigo. Protegida.
Ressalvo aqui o texto de ontem. Fomos visitar a parte nova da cidade. Upper class. Politicians… Dez anos de prédios novos, de condomínios, United Colours of Benetton, Mango Store e afins…expansão brutal. Desordenada. E no meio dos prédios imensas yurts. Os donos não vendem as terras onde estão instaladas. Por enquanto. Hão-de vender quando valerem muito muito dinheiro.



O grupo
Temos o casalinho da Malásia
Temos a australiana vaidosa, e outra australiana novíssima bem simpática.
Temos a gigante alemã
O calado canadiano
A americana maluquinha
A simpática inglesa
E as duas velhotas que somos nós.
Os risos são nervosos, hesitantes.
Mas são risos.
O sol brilha e o dia vai ser longo.


Domingo
Nunca gostei da ideia de acampar. Acho mesmo que nunca o fiz. Desconfortável. Incómodo. Com bichos, banho mal tomado, frio ou calor.
Dormir numa yurt é igual. Ou deve ser. Pior talvez. Não há petromax, gerador, geleira para o pic-nic, pão comprado na esquina para as sandes da manhã. Mas a ideia de estar na estepe, ir buscar o gado cavalgando montes acima, ver a forma como os nómadas vivem, até me entusiasmou. Céu estrelado, silêncio absoluto, corte total com a civilização.
Já escuro voltámos do local onde se mugiram as vacas. A cavalo uns, em carro de bois os outros. Qual não foi o espanto ao vermos ao lado da nossa “casa” três ou quatro carros, faróis acesos, musica aos berros, grande festa bem bebida.
Já se foram embora. O marido da família acabou de acender uma salamandra no centro da yurt. Vai aquecer-nos durante a noite. Ouvem-se uns cavalos a correr. As vacas a mugir. Os cães a ladrar.
Até amanhã.



Segunda feira
Mudámos para o segundo acampamento. Os nómadas mudam de local quatro vezes por ano. Escolhem sitios bons para as pastagens e mais ou menos abrigados conforme a estação. No verão podem fazer quarenta graus positivos, no inverno facilmente chegam aos quarenta negativos. Levam as yurts, os móveis, o gado.
Esta família, pelo facto de receber turistas, tem vindo a melhorar o seu nível de vida. Ligados às baterias das placas solares, têm televisão, máquina de costura, máquina de lavar roupa. Fazem umas ligações com uns cabos a baterias de carros carregadas pelas ditas placas solares. E já puderam mandar dois filhos para o liceu na cidade mais próxima. Ficam com familiares.
Entretanto estão a acabar de construir o WC. Uma casinha de madeira com um buraco no chão lá longe no meio do prado. Podemos usar pergunto eu? Por gestos e algumas palavras em inglês conseguem dizer: está quase pronta. Mais uma hora. E de repente vejo passar um carrinho de mão com uma retrete em direcção à obra. Modernices… Não foi colocada. Ficou ao lado.



Terça feira
Hoje de manhã o pequeno almoço foi tomado à volta de uma mesa na imensa planície verde rodeada por montanhas da mesma cor.
Arroz cozido com leite feito especialmente para mim, que não como gluten, também não bebo leite mas não faz mal, uns fritos de farinha barrados com uma pasta de gordura entre manteiga e nata, chá com leite e sal.
À nossa volta centenas e centenas de vacas, cabras, ovelhas, cães e o silêncio, cortado apenas por uns mugidos, balidos e palavras em surdina comentando a magia envolvente. Lentamente o som do galope de cavalos selvagens a chegar do nada foi crescendo. E crescendo. Um som quente. Grave. Cada vez mais perto. Envolveram-nos e rodearam-nos. Uns corriam por um lado, os outros pelo outro. Galopavam em direcção ao rio. Ficámos extasiados. Ficámos estáticos. Imóveis. Incapazes de quebrar o encanto com qualquer gesto, movimento ou som. E os cavalos passaram. E passaram. Talvez duzentos, trezentos. Ou mais. Não sei. Depois o som foi decrescendo. E desapareceram.
Lentamente começámos a limpar a lágrima, a sorrir e a voltar ao nosso pequeno almoço. Foi um redespertar para uma realidade, ainda que bem longe da mesma.


Quarta feira
Reza a lenda que um dia uma nómada saiu à noite com um bébé ao colo e encontrou um fantasma que lhe quis tirar a criança. Mas conseguiu fugir. Ao consultar um monge sobre o que fazer se a situação se repetisse, ele deu-lhe o seguinte conselho: Sempre que saíres com o teu filho no escuro, esfrega-lhe cinza na testa. Se o fantasma aparecer, o que este verá no teu colo é um balde de cinzas e assim a criança estará protegida. E assim passou a ser. Na Mongólia, quando se sai à noite com crianças até aos cinco anos, as mães fazem este ritual. Espalham cinza na testa. A nossa guia fá-lo também. Na cidade.
Quarta feira à tarde
Escrevo este texto ainda com as pernas a tremer, a adrenalina acumulada. Um misto de medo com felicidade. Porque acabou bem.
Saímos de uma família para outra a cavalo. 12 cavalos, 12 cavaleiros. Por montes, vales, rios. Em cada vale uma galopada. Nas elevações o passo descansava-nos. O meu cavalo era de corrida. Eu não sabia. De repente disparou estepe fora. Correu, correu mais, correu mais ainda. Abrir a rédea nem era opção pois desequilibrar-me-ia de certeza. Então deixei ir. Agarrada à crina, pés fincados nos estribos, vento cada vez mais rápido, o verde a passar os olhos a chorar. Só tenho de deixar ir. Há-de parar penso eu. E o cavalo cada vez mais rápido, cada vez mais e cada vez mais. Velocidade louca. Vou cair e como é que saio daqui do fim do mundo? Aterrorizada a tentar manter a calma. Há-de parar. Um quilómetro? Dois? A mim pareceram-me dez. Ainda saltou uns arbustos, e de repente estancou. Parou. À frente das árvores sem mais nem quê.
Deixei-o comer para o acalmar. Para me acalmar. Um bom tempo. Respirei fundo e regressei. A cavalo. Desmontei e chorei. Agora estou bem. Feliz. Foi a melhor cavalgada da minha vida. Só por isto valeu a pena vir. Por isto e por muito mais.

Quinta feira
Durante dias pertencemos à natureza. Tomámos banho na água do rio, comemos só o que os borregos e as vacas nos dão. Leite, coalho, nata azeda, carne. Com a ajuda de alguma farinha comprada, batatas, cenouras e cebolas. Ao almoço, ao jantar. Sempre. As deslocações fizeram-se a cavalo. À chuva, ao sol. Quilómetros e quilómetros. Por entre vales e serras, prado e rios. Sem electricidade, sem água canalizada, sem aquecimento, sem telemóvel, sem emails, sem redes sociais.
Os nómadas com quem ficámos são alegres. Carinhosos com as crianças. Parecem felizes. Claro que têm motas, telemóveis, carros. Mas não querem ir para a cidade. Não precisam de mais nada. Vivem da natureza. E assim o fizemos nós. Em hotéis com cinco milhões de estrelas.



Sexta feira
E acabou. O que foi difícil? Tudo o que já descrevi. A acrescentar uma partilha a que não estou habituada. De tempo e de espaço. O que ganhei? Uma outra partilha a que também não estou habituada. Longas conversas à volta de uma mesa, de uma fogueira, a cavalo, nos passeios, sentados no chão. Hinos nacionais, História do país, cerimónias, rituais, sistemas de saúde, alimentação, penteados, sapatos, escolas, operações ortopédicas, novos aviões, turismo, e muito mais. E gargalhadas. Muitas gargalhadas. Em inglês de Inglaterra, do Canadá, da Austrália, dos Estados Unidos, da Malásia, da Mongólia e de Portugal. O que ganhei? A certeza da superação de mais um desafio. O que ganhei? A certeza do caminho que estou a percorrer. Menos é Mais.
Obrigado por me lerem.
Até à próxima. Deve ser em fevereiro. A ver se acontece…
Setembro 2017
Galeria de imagens
Fotos de Gabriela Fernandes Pinto, Logan Jones, Titus Tang, Sylvia Tay, Vivienne Sales
Isabel almasqué | 2017-09-03
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Magníficos textos, Benedita. escrita simples e depurada que nos consegue transmitir os ambientes e as sensações. gostei dos hotéis com cinco milhões de estrelas. Boa!
Benedita Paes de Vasconcellos | 2017-09-05
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Obrigado Isabel. Um bj
Domingos Roque de Pinho | 2017-09-15
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Que viagem tão fora do comum,mas que tem a grande vantagem de provocar quem lê. Esta descrição tão bem conseguida. Parabéns ás manas pela coragem de enfrentar o desafio que deve ter sido. Também achei muita graça as milhões de estrelas do hotel!As crianças locais são queridíssimas!Beijinhos e obrigado por me darem a oportunidade de ler a descrição da viagem
BENEDITA PAES DE VASCONCELLOS | 2017-09-17
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Um Bj Domingos. Fico bem feliz por poder mostrar que ainda há tanto mundo bom por explorar. E que nos ensina um pouco…
duarte calheiros | 2017-09-16
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Gosto imenso de viajar , mas não fiquei adepto deste tipo de viagem . admiro no entanto o vosso espírito de aventura e o despreendimento.
Parabéns também pela excelente descrição e qualidade das fotografias
BENEDITA PAES DE VASCONCELLOS | 2017-09-17
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Imagino Duarte. O Carlos também não foi. Também não é adepto! Bjs
teresa n. andrade | 2017-09-23
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Gostei imenso da descrição da viagem – até do regressar a casa com o cheiro a pum! – parece que estávamos a viver a experiência que vocês tiveram. a reportagem fotográfica também muito boa, e dá-nos a sensação de que podíamos estar lá, naquele silêncio e gozo da natureza pura, num despreendimento total – ficaria interiormente cheia!, a trasnbordar de emoções.
resumindo, fiquei com imensa inveja!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!. e parabéns por terem conseguido transmitir-nos a vivência que tiveram.
bjinhos
tna
Adelino de Almeida | 2024-11-24
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Muito bom.