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Minas Gerais

O campo, o campo sujo, o cerradinho, o cerradão, as matas de galeria…

Há um interior de Minas Gerais – the hinterland, como diziam os cronistas do século XIX – que é especialmente belo, lá onde não chegou a exploração econômica desenfreada e a expansão urbana. O campo, o campo sujo, o cerradinho, o cerradão, as matas de galeria vão perdendo espaço para as grandes plantações de eucalipto: é o deserto verde que avança. O sistema de lagoas, onde as mais altas vazavam para as mais baixas, na época das chuvas, não existe mais – os últimos que puderam desfrutar dessa beleza são os da geração de mais de 50 anos hoje. As veredas e os buritis, caminhos de água e as palmeiras que indicam sua presença, são cada vez mais raros de encontrar. Guimarães Rosa escreveu um dos livros mais lindos do mundo e imortalizou essa paisagem: Grande Sertão, Veredas. Rosa tem a escrita difícil, feita de terra, água e seres moventes. Não adianto, nem facilito nada, mas é aventura literária a não perder.

Minas Gerais são planuras e montanhas. Planuras são cerrado e campo, montanhas são puro minério. Sofre, por um lado, a pressão das mineradoras, nacionais e transnacionais, e, por outro, dos grandes criadores de gado e de plantadores de eucalipto, ambas atividades que fazem uso extensivo do solo. O eucalipto, aqui, não está ligado à indústria do papel, mas à produção do carvão vegetal, para dar suporte à exploração do ferro guza e à indústria do cimento. Esburacada e desmatada, Minas, pojada de história antiga e cultura vgorosa, vai abrindo caminhos de resistência, pequenos e grandes baluartes, especialmente pela organiação das comunidades tradicionais atingidas pela mineração.

As cidadezinhas que se beneficiam da expansão econômica aspiram crescer e virar Nova York, ou, pelo menos, São Paulo. O sky line apavora. Uns prédios horrendos brotam do meio do campo e trazem com eles a cultura dos condomínios fechados e da vídeo vigilância. A criminalidade aparece do nada e se organiza em torno da droga, o crack como sua face mais cruel. Há 5 minutos, na estradinha de barro, tinha seriema gritando nos galhos, pé de copaíba e rastro de lobo guará, depois da curva o que se vê são essas estacas espetadas na colina, que trespassam a mais básica humanidade.

A região que visito é de fabricação de calçados, produto barato que atinge pontos longínquos do mercado interno. São inúmeras indústrias, de tamanho variado, que empregam milhares de pessoas. Onde há trabalho e desregulamentação, que é o caso brasileiro, há conflito. Um único juízo do trabalho atende a área e a pauta de audiências acontece três dias por semana. Por poucos minutos não conheci o juiz e não assisti à última audiência do dia. Também há uma faculdade de Direito por aqui e uma tarefa a cumprir é entregar um currículo ao coordenador do curso.

Visões do campo

O empregado percebe ao longe uma vaca no meio do cerradinho. “ – Tá espremendo árvore, deve de tá engastalhada.” Era a Salina em hora de parir bezerro. Mais perto, vê-se logo que não há pezinhos da cria para fora do buraco de nascer. “ – É mal. Tá sofrendo. É capaz de ser aborto.” Toca a trazer cavalo selado, corda, luva de ajudar a parir. A vida e suas razões são muito simples para essa gente do campo. Os ciclos, as premências, as cruezas de tudo. O úbere pinga e uma substância viscosa escorre pelos quartos traseiros. O homem enfia o braço até o ombro no ventre da bicha e ajuda a trazer para fora as patinhas da frente. “ – Tá morto.” Agora, são dois a puxar e abreviar o sofrimento. Um corpinho delgado e amarelento é derramado no chão. A vaca, coração branco na testa, lambe e empurra o que não chegou a ser cria, e que nunca vai alcançar se por em cima das patas. Foi vida, agora é morte.

Água do céu

A chuva chega e Chico, a calopsita, calcula. A casa ampla do professor de Ciência Política abriga ainda três cãezinhos, oito canários, um peixe e um papagaio amazônico, que abre as asas e grita feliz com o aguaceiro que cai. O interior seduz, muito pelas pessoas e seus modos de viver. Andréia, a mulher da casa, convida: “ – Temos um grupo, só de mulheres, que se encontra pra degustar cervejas artesanais e praticar boa culinária. Venha!”. Elas ainda não se aperceberam que sou uma mulher sem coração.

Sangue sem veia

Acordei sem passado, sem futuro e sangrando, a calcinha lilás toda manchada. Não sei o que é e não me preocupo: devem ser as veias que não encontram o coração. O carro me carrega pelos carreiros de barro. Cidadezinhas, padarias, advogados. Iara, atrás do balcão, em Araújos, vende roscas de milho e diz que imobiliária só há uma, assim como só um escritório de advogados. “ – De onde? Do Rio? Aqui é muito bom, é tranquilo.” Jessé, o juiz, Iara, a padeira, Zezé do Simeão, o homem perdido no tempo, cada peça de roupa num tom de barro. Estrada, estradinha, auto-estrada, carros, carros. Onde é o caminho do cerrado?

A porca que pariu

As vacas parem, essa noite de chuva pariu a porca no cercado. As tetas monumentais alimentam os bacorinhos que sobreviveram. É hora de uma manobra delicada: tirá-la do chiqueiro e colocá-la de volta no cercado para resgatar as duas crias mais frágeis e cuidar delas. Recebo os dois bichinhos e vou lavá-los no tanque, tirar a carapaça de lama seca que obstrui olhos e narinas. Precisam mamar, seguir vivendo, seguir sendo. Os homens da fazenda querem que eles vivam para morrer, eu quero que eles vivam para viver. Diferença básica.

Bezerrinhos

Pelos bezerrinhos, não posso fazer nada. É fazenda de produção leiteira e os machinhos que nascem passam fome até morrer. Os homens não comem aquela carne de vitelo, não dão, ninguém quer comprar – é assim e pronto. Entro na área do curral onde dois esperam sua sina. Um sequer levanta, tão fraco que está. ; o outro, olhos doces, delineados de preto, lambe insistentemente minha mão molhada e espreme minhas coxas com a cabecinha sem cornos, atrás de um leite que não existe.

Sem olho

Afinal, o cerrado. Touceiras de madeira de lei. Emaranhados de cipó, galhos secos, um tapete de folhas: serrapilheira. O cerrado é áspero: mosquito, mutuca, micuim. O cerrado é macio: água, asas, araticum. Caminhar, caminhar, olhar, fotografar. Mas a câmera se nega a continuar: sem mais registros. Não liga, nem desliga. Agora sem olho! Quero ir embora! Nem o ninhozinho de pássaro, dado de presente, me valeu. Quero ir embora! Não fico mais.

Meninas

Estrada, estradinha, estradão. Chico Buarque canta dentro do carro: Minhas Meninas. As minhas meninas, Gisa e Laura, me levam de carona. Próxima parada: Belo Horizonte, de ipês amarelos infiltrados. Amanhã: Rio de Janeiro.

Maria Celeste Lustosa
Outubro 2013

Fotos de Maria Celeste Lustosa, Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Advogada. Nasci e vivo no Rio de Janeiro. Um amigo, de Lisboa, sugere completa alterização, à Pessoa, e ser uma enfermeira que escreve de Manchester. Já está.

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