De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Meditações sobre o bom tempo e o mau tempo

Este texto não é dedicado nem a uns nem a outros. Este texto não é dedicado a ninguém. Este texto é dedicado ao fim do mundo e em louvor das árvores que nele sobreviverão. Este texto é dedicado a tudo aquilo que permaneceu e permanecerá fora da história: a natureza.

1.

Naquela altura havia a esperança que a qualquer momento chovesse e que as estátuas ficassem molhadas. Mas naquele dia não choveu. As estátuas não ficaram molhadas. Hoje, por meio de estudos avançados, sabemos que naquele dia houve uma revolução, porém, sabemos que isso em nada interferiu com o tempo. Só a chuva molha as estátuas, só a chuva limpa a rua.

2.

A estatística confirma que uma grande parte da população deixou de ter esperança na meteorologia. As previsões raramente acertam, as estações já não são o que eram, ninguém arrisca comprar guarda-chuvas. As pessoas na sua generalidade contentam-se com a felicidade. Não se importam mais com o céu, nem com as nuvens. Nem com as estátuas.

3.

Estudos europeus concluem que os portugueses não toleram que o regime controle politicamente a meteorologia. Embora quase nunca chova, a chuva faz parte da crença nacional. Perante a ameaça do derrube do regime, o regime ameaçou acabar para sempre com a meteorologia. Dado este impasse, chegou-se a um árduo consenso que a muitos agradou e a muitos desagradou. Decretou-se que a chuva seria património imaterial da humanidade. Assim podemos amá-la e possuí-la ainda que ela não faça parte da nossa vida.

4.

Os mais cépticos cidadãos representam uma minoria afectada, encontram-se clandestinamente em lugares oblíquos e realizam danças tribais proclamando a chuva. Mais que chuva, dilúvio. Esses indivíduos que podem ser considerados apátridas são imediatamente socados por cinturões negros do a-e-i-o-u. Eles escrevem, eles falam, eles lêem. Eles vigiam a cidade. Eles impedem o fim do (seu) mundo.

5.

Se pensas em limpar as estátuas, se pensas em limpar as ruas, se acreditas na chuva, se ainda tens esperança no fim do mundo, se não temes os cinturões negros, se para ti a meteorologia ainda te diz alguma coisa, se desejas uma molha, se vives sob o signo do aguaceiro e consideras intolerável o que os políticos fazem ao céu com o intuito de proteger as estátuas então terás de revoltar-te IMINENTEMENTE.

6.

Eu sei o que tu pensas. Tu pensas: ainda que chovesse as estátuas não se molham. Foi assim há 40 anos. Será assim em 40 anos. Não o faças pelas estátuas. A história das estátuas deixou de ter importância. Já é tempo de ignorar as estátuas. Fá-lo pelas árvores. Fá-lo pelas ondas do mar. Fá-lo pelas montanhas e pelos desertos. Fá-lo em Abril quando as águas são mil. Revolta-te: protege o céu e terra.

Ivo Lima Carmo
Abril, 2014

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Nasceu em Lisboa em 1979, estudou Filosofia e vive em Berlim, onde trabalhou como jardineiro, vendedor de revistas e empregado de mesa. Em Portugal foi distinguido em 2008 no Concurso Jovens Criadores e em 2012 venceu o Prémio de Ensaio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores com a obra Do Paraíso. Autor do livro O Longe Oeste, Na Senda do Sete-Estrelo pela editora Epubli.

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