A noção de que as despesas do Governo têm que ser financiadas com dinheiro preexistente (proventos fiscais, impostos, taxas, poupanças, etc) é uma das maiores falácias divulgadas nos meios de comunicação, hoje em dia. Não podemos ter reformas decentes na velhice porque não poupámos o suficiente ao longo da vida, a segurança social está falida e, dentro de pouco tempo, será incapaz de prover as necessidades para que foi criada, porque os descontos para a mesma não são suficientes. É o mesmo tipo de raciocínio que argumenta precisarem os bancos comerciais de depósitos preexistentes para poderem conceder empréstimos.
A base conceptual do sistema financeiro, na cabeça das pessoas, é a noção de o dinheiro ser um recurso limitado, propriedade de entidades privadas (os investidores), cuja confiança é fundamental para a concessão de crédito.
Na realidade, olhando o sistema Banco Central/Bancos Comerciais como um todo, o dinheiro é ilimitado, sendo as entidades privadas envolvidas meros intermediários entre o sistema Banco Central/Tesouro e o público devedor. O Governo, através do Banco Central/Tesouro, é o último garante do dinheiro, criado pelos bancos comerciais quando estes concedem um empréstimo.
O recurso é ilimitado e só precisa da vontade do governo para ser criado.
No início da WWII as reservas nos bancos americanos eram à volta de 15 biliões de dólares, e com o dinheiro de cidadãos, corporações e entidades financeiras nos bancos, o total era de 68 biliões de dólares. Cinco anos depois, em 1945, as despesas da guerra somavam 340 biliões de dólares. Com o dinheiro preexistente em 1940 só uma guerra com a da Guatemala poderia ter sido financiada.
O dinheiro é criado, circula, e nessa circulação alimenta a economia ao mesmo tempo que muda de carácter, passando a dívida com cada ciclo.
E foi assim:
No início da guerra os bancos comerciais e o FED compraram dívida do governo com dinheiro criado Ad Nihilo. Com este dinheiro o governo pagou os primeiros encargos da guerra. O desemprego passou a ser baixíssimo e os lucros das corporações e empresas eram taxados a 95%. Este aumento do poder de compra das massas laborais, poderia ter levado à inflacção. O racionamento, a restrição ao consumo que os impostos sobre os salários e a compra generalizada de Obrigações da Guerra (War Bonds) por parte do público, limitando o rendimento disponível da população, controlaram a subida de preços. Não houve inflação.
Com o dinheiro dos impostos e dos War Bonds um novo ciclo de despesas é iniciado. E o processo repete-se, em cada novo ciclo de despesas/receitas que é o funcionamento da economia. Quando é preciso aumenta-se a massa monetária circulante com nova criação de dinheiro Ad Nihilo, e assim por diante. E o dinheiro lá vai circulando sem parar. Tudo para a produção de armamentos que irão ser destruídos a curto prazo e tornados obsoletos a médio prazo. A produção de bens de consumo reduzida a um mínimo, foi contudo suficiente para garantir um nível de vida razoável à população e a economia ronronou florescente.
Os 340 biliões gastos na guerra foram financiados com 1/3 de dinheiro criado Ad Nihilo, 1/3 dívida contraída (War Bonds) e 1/3 de proventos fiscais (impostos).
Finalmente as despesas acabaram? Nem de perto nem de longe. Temos, a seguir, a GI Bill (estudos universitários grátis para os soldados desmobilizados), a reestruturação da indústria para o fabrico de bens de consumo, o Plano Marshall para a Europa, a Guerra da Coreia, etc etc.
E o dinheiro foi criado a par e passo das necessidades da economia e do Governo.
Os impostos sobre os salários, se forem gastos pelo Governo, levam a um orçamento equilibrado e a um multiplicador (Balanced-Budget Multiplier), mas geralmente são insuficientes para manter uma procura agregada e um desemprego aceitáveis.
E diminuir os impostos sobre as corporações, não aumenta o investimento em bens e equipamento por parte das mesmas. Quando investem, as firmas endividam-se (les affaires c’est l’argent des autres !) e o dinheiro que poupam com a diminuição dos impostos, não gastam em bens ou serviços oferecidos à venda pela comunidade. Em vez disso injectam o capital no universo especulativo financeiro.
Mas num país que usa moeda estrangeira e com limitações estatutárias ao deficit governamental, como Portugal hoje em dia, os impostos são a principal fonte de financiamento, tanto para despesas do Governo como para pagamento dos juros da dívida. De maneira que o valor nominal da dívida aumentará gradualmente, e só poderá ser pago com a venda de património territorial.
Na Irlanda em 2008, as contas do governo estavam equilibradas e sem deficit, mas o país ficou com uma dívida enorme porque o governo resolveu assumir as responsabilidades do sistema bancário privado, pondo o povo a pagar os impostos redentores.
A lógica por detrás de tudo isto é obscura. Nas altas esferas da finança internacional está a resposta. Limitemo-nos, cá em baixo, a tentar compreender o funcionamento do circo. Já vimos os palhaços, os elefantes amestrados e os malabaristas. Mas ninguém nos explica os truques dos mágicos, que são espantosos e intrigantes.
José Luís Vaz Carneiro
Tucson, Setembro, 2017



Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário