Há muitos, muitos anos na Holandia, o ouro era tudo. Servia para trocar tudo o que era trocável, e se para aí estivéssemos virados, servia para guardar na gaveta sem nunca perder o valor. Mas como meio de troca em si, era péssimo. Tinha que ser constantemente pesado e para pequenas transacções era inútil, a ninguém passava pela cabeça raspar pequenas chispas do lingote para comprar tabaco. Além disso estava sempre sujeito a ser roubado. De maneira que toda a gente depositava o ouro nos cofres fortes do Banco, usando os recibos como moeda nas transacções do dia a dia. E a balança comercial do país estava equilibrada, todos os anos a mesma quantidade de ouro entrava e saía como resultado das trocas com outros países. Rapidamente os recibos passaram a ter vários tamanhos e a exibir números impressos. A nota de banco nascia. E todas as notas circulando na Holandia eram cobertas pelas reservas de ouro no banco, ao câmbio de uns tantos florins por grama de ouro. E cada nota era uma dívida do banco ao povo da Holandia, a quem prometia dar X gramas de ouro por cada Y florins apresentados nos balcões.
E as notas de banco tornaram-se dinheiro: meio de troca, unidade de contabilidade e reserva de valor.


Mas com o tempo, a produtividade da indústria na Holandia aumentava, os Holandios estavam mais ricos, todos os anos mais bens e serviços apareciam no mercado e começou a sentir-se a falta do meio de troca universal, falta de dinheiro. Com a inevitável descida dos preços (deflação, a mesma quantidade de dinheiro a correr atrás duma quantidade aumentada de bens e serviços), as dívidas tornaram-se impossíveis de pagar e os custos que a indústria suportava durante o processo produtivo não eram cobertos pelas receitas, visto os preços estarem em descida. E as minas de ouro eram poucas e a quantidade de ouro produzido não acompanhava o crescimento de tudo o que era trocável. E o ouro das Américas desaparecia, exportado no sorvedouro que era o comércio com a China e a Índia. Um problema!
O banqueiro, entretanto, já tinha notado que ninguém mexia no ouro depositado e todos viviam felizes a trocar o papel de que eram feitas as notas de banco. E com a carestia de dinheiro, começavam a aparecer pessoas a pedir empréstimos. De maneira que o nosso banqueiro começou a imprimir e emprestar notas de banco, sem que nenhum ouro tenha sido adicionado de novo às reservas no cofre. Mas não disse nada a ninguém. E tudo correu às mil maravilhas. A actividade económica a todo o vapor e a confiança no banco intacta porque ao ocasional cliente, que aparecia a querer trocar notas por ouro, nada era negado. Mas outro problema começava a fermentar. As reservas de ouro já só correspondiam a uma fracção das notas em circulação. Se todos aparecessem a redimir as ditas notas, não havia ouro para as cobrir. Mas a confiança estava intacta e tudo corria bem. Vendas e compras eram feitas e lucros realizados, tudo usando papel sem valor intrínseco e sem ouro por detrás. E assim foi durante um tempo.
Mas um dia, por causas obscuras, correu o boato que “não havia ouro no banco” e as pessoas começaram a aparecer e a trocar notas por ouro. O nosso banqueiro, prevendo o que estava a acontecer, suspendeu as trocas e fechou o banco, prometendo abri-lo no prazo de uma semana. Foi o caos. O fecho do banco, confirmou as piores suspeitas: a actividade económica parou. Suicídios, instabilidade e quebra da ordem social. Mas o nosso banqueiro estava calmo, como a Holandia fazia parte da Ouropia, ele pode recorrer ao Banco Central Ouropeu (BCO). Esta instituição era uma espécie de banco supranacional ao serviço de todos e de cada um dos bancos nacionais. E o nosso banqueiro pediu emprestado ao BCO umas toneladas de ouro, suficientes para cobrir todo o papel em circulação na Holandia. E quando os camiões chegaram com o ouro, o banco abriu e foi uma corrida generalizada a trocar as notas. E com um sorriso o nosso banqueiro distribuiu o ouro, tranquilamente. E sem haver nenhuma recusa à conversão, a confiança do público restabeleceu-se. O ouro começou de novo a ser trocado por notas e a regressar aos cofres do banco. E mesmo os ladrões, que entretanto houve, depositaram os proventos no banco, não fosse o diabo tecê-las….E os camiões voltaram com o mesmo ouro para o BCO.
E tudo voltou à normalidade. Mas com o ouro esquecido nas profundezas do cofre, as notas de banco que não eram precisas a curto prazo, para as necessidades correntes do público, eram depositadas no banco. E começaram a acumular-se. Resmas de papel sem uso, uma dor no coração do nosso banqueiro (assumindo que os banqueiros têm coração). E de novo tudo se repetiu. Com o tempo a produtividade da indústria na Holandia aumentava, os Holandios estavam mais ricos, todos os anos mais bens e serviços apareciam no mercado, e começou a sentir-se a falta do meio de troca universal, falta de dinheiro. Mas desta vez era arriscado imprimir mais notas, as reservas de ouro podiam tornar-se insuficientes. Mas o nosso banqueiro teve uma ideia: inventou o livro de cheques. Quando alguém precisava de crédito, abria-se uma conta no banco em nome dessa pessoa e dava-se-lhe um livro de cheques. E sendo os cheques aceites para trocas comerciais, ninguém precisava das notas-papel depositadas no banco. Estavam lá, só para garantir a convertibilidade dos cheques. E de novo o nosso banqueiro exagerou na emissão de contas à ordem com livros de cheques. E de novo alastrou o boato de que “não havia notas-papel para cobrir todas as contas à ordem existentes na Holandia” (por esta altura já ninguém se lembrava do ouro, esquecido nas profundezas do banco)…


Não vou repetir o que adivinham ter acontecido. Desta vez não houve camiões do BCO. Imprimiram-se umas toneladas de papel-moeda que foram destruídas quando mais tarde regressaram ao banco, depois da confiança restabelecida.
E assim tem sido através dos tempos…
Por essa altura, um conhecido comerciante passou um cheque de mil florins para pagar um casaco de pele à namorada. O vendedor do casaco, tendo feito um lucro de 200 florins, em vez de levantar o dinheiro no banco, endossou o cheque para pagamento dum burro. Dado o bom nome do comerciante inicial, o vendedor do burro, tendo obtido um lucro de 200 florins, em vez de levantar o dinheiro no banco, endossou o cheque para pagamento de…..e assim por diante, tendo cada um ganho 200 florins com cada transacção. Quando o décimo recipiente do cheque, tendo vendido com um lucro de 200 florins um móvel ao nono recipiente, decidiu levantar o dinheiro do banco… o cheque não tinha cobertura. Não estando disposto a perder tudo, propôs a cada um dos pregressos intervenientes a contribuição de 100 florins. Conseguiu no total 900 florins, que recolheu agradecido. E mesmo assim, cada um teve um lucro de 100 florins!
Mas o pobre do primeiro comerciante foi enforcado pelo crime de emissão de moeda, uma prerrogativa exclusiva dos bancos com o apoio legal do governo (que geralmente devia um dinheirão aos mesmos).
José Luís Vaz Carneiro
Setembro, 2012


Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário