A surpresa gera a emoção, a rotina, o desinteresse. Estou um pouco apreensiva pois estas minhas viagens a África começam a fazer parte da minha vida. Mas não vou deixar que o meu olhar já não veja, pois este continente, que adoro, vai certamente continuar a surpreender-me por muito muito tempo mais.
Here I go again!
Até já.
Aula de geografia
Adoro conversar com o Raimundo. E ele gosta mesmo de aprender.
Hoje tivemos uma aula de Geografia.
Quer dizer que a Sinhora está no avião onze horas para vir lá de longe?
Estou Raimundo. Atravesso a África toda que é muito grande.
Então África é mais grande que Europa?
Muito muito mais Raimundo.
Então e o Portugal?
É muito pequeno. Assim do tamanho do Niassa.
Ah! Então não tem províncias e Governador? Só tem município?
Tem províncias sim Raimundo, mas não têm governador. Mas Município também tem. Ah! ...(pensa..) Então, dirigentes mais importantes mesmo estão todos lá, em Lisboa!
É isso mesmo Raimundo.
E como é a cidade de Lisboa?
Google Maps e Google Earth em acção.
Tantas casas! Tantas estradas!
E como andam as pessoas para se deslocarem na cidade?
Tem chapa e tem um comboio por baixo da terra.
Ah!!! …Afinal!… E ficam as casas por cima?
Xi! Eu ía aí morrer de medo.
O quê Raimundo?
Eu ía morrer de medo! Nunca ía andar nesse aí.
Obrigado Sinhora!


Em casa
Pois é. África tem os seus encantos.
Hoje não temos água, a bomba avariou, não temos energia, está a fazer reparação, não temos internet.
E também não há motorista para nos levar à cidade. (Não podemos guiar os carros da empresa)
Não se trabalham os números que estão partilhados na drive, não se acende a TV, não se vêem séries na Netflix, não se mata o tempo olhando o facebook, não se trocam whatsapps, não se responde aos emails.
Então volta-se ao passado. Ouve-se e contempla-se a natureza, lê-se, conversa-se e dorme-se neste terraço onde a preguiça se instalou.
Não sei quando vou conseguir enviar este texto.
Há-de ser Sinhora. Obrigado.
Quando for, já passou o encantamento.
Não há… (continuação)
Hoje é aniversário de D. Margarida. Temos alguns convidados para o lanche e estivemos a preparar.
Podíamos fazer pãezinhos com fiambre?… não existe fiambre mãe!
Com queijo? Queijo também não há mãe!
Pasta de ovo com salsa ou coentros?… coentros e salsa não há.
Podíamos pôr umas batatas fritas na mesa, toda a gente gosta… Batatas fritas? Onde?
Ah! Temos espinafres e cogumelos congelados. Vamos fazer uma tarte. Tens natas?.. Não há.
Bem divertido este preparar de lanche.
Bolo de chocolate com a tablete que veio de Lisboa.
Pasta de atum com tostas feitas em casa. Limonada com os limões do jardim.
E as batatas fritas! Mandioca comprada no mercado, cortada às fatias muito fininhas fritas pelo Raimundo. Deliciosa!
Grande lanche.
Parabéns minha querida filha. Pelo que já aprendeste e nos fazes saber.


O sacrifício
Este episódio aconteceu na semana passada e foi-me contado por quem presenciou a cena final.
O negócio corria mal e o comerciante foi ao feiticeiro. Sacrifica a tua filha e enterra-a na loja disse ele.
A criança tinha cinco anos e o corpo foi desenterrado pelo cão.
Moçambique


The family moves to África do Sul…
Entrámos na África do Sul. Entrámos na civilização. Enorme a diferença!
Estendem-se até perder de vista as plantações de banana, de mangas, de cana de açucar. Ordenadas, alinhadas, infindáveis.
Aula agrícola dada pelo genro e de repente… Polícia. Stop.
Papel não estava conforme. Meia hora de discussão. Suborno não pegou, não estamos em Moçambique.
Vinte quilómetros para traz, vinte quilómetros para a frente, hora e meia perdida.
Bébé chora, criança rabuja, velhote reclama. Tudo tem fome, tudo tem sono.
Chegámos ao hotel, chegámos ao restaurante. Bébé chora, criança rabuja, velhote reclama.
Está fechado! Afinal não há energia. Afinal estamos no mato!
Famílias
À volta do Kruger, a zona tampão tem inúmeras casas feitas de tijolo de matope. Grandes, pequenas, com ou sem piscina, enormes janelas, telhados altíssimos. Mal se vêem, confundem-se com a natureza. Muitas têm zebras e gazelas a pastar à porta. Aqui e ali uns centros de apoio.
Supermercado, lavandaria, restaurante, internet café, parques infantis.
E de manhã, qual desenho animado do Walt Disney, saltam as famílias cá para fora. Pais, mães, filhos e filhas, avós e avôs.
E naqueles centros, as famílias cheias de crianças vão às compras, reúnem-se, almoçam, brincam, passeiam. Feios, gordos, grandes.
Aproveitam a natureza, passeiam, andam de bicicleta, procuram os animais e sentam-se à volta dos churrascos em amena cavaqueira.
Adorei ver. Acho que se fosse sul africana, feia, gorda e enorme e gostasse de churrascos, faria o mesmo.


Meninos e meninas
Bem que tenta o homem combater o desastre. Infelizmente a força humana não consegue, mas neste canto longínquo faz-se um esforço.
São 700 alunos diz o professor que acompanha o grupo que está a limpar a praia.
Todas as semanas trazemos cerca de 100. Os outros ficam a fazer formação em conservação marítima.
Olho com mais atenção e só vejo uma menina… têm de estar a frequentar a escola para fazer essa formação.
Então não há meninas na escola? Nada… nessa idade já as meninas não vão.
Pois não. Já são mães.
Responsabilidades
Perguntámos ao nosso motorista se tem namorada… Não tem não. Esta vida de motorista é muito difícil. Tem muita responsabilidade.
Tem de estar sempre disponível. E se tem essas coisas de amigas, tem de ter compromisso com elas e assim não me posso responsabilizar pelo trabalho. Fica difícil. Então não posso ter essas amigas aí.
Hoje à noite tivemos de ligar para o Sr. Joshua. Não atendia. Não atendia. Não atendia. Fomos à procura e lá estava ele dentro do Bus muito bem acompanhado.
Ele tem razão. Namorar e trabalhar são duas actividades incompatíveis.
Benedita Vasconcellos
Abril, 2017
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário
Isabel almasqué | 2017-12-05
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Que belos textos Benedita. Dá prazer lê-los. Um retrato perfeito de África, em poucas palavras mas com muita sensibilidade. Está tudo lá. Parabéns